O ano era 2008, e a palavra streaming não era conhecida por aqui (estávamos a quatro anos ainda de ouvir o nome Netflix, que na época tinha apenas um ano de vida). Então, a menos que você tivesse acesso a uma assinatura de canal fechado ou um amigo que a tivesse, o jeito que mantinha as pessoas em dia com suas séries favoritas (desde que conseguissem achar uma legenda que sincronizasse com aquele episódio, rs), era através dos Torrents, uma popular forma que, junto às mídias físicas, fez do Brasil um dos maiores países praticantes de pirataria do mundo. Neste ano, em específico, lançava pela FX uma série que marcaria uma geração pelos próximos seis anos: Sons of Anarchy, ou SOA.

Drama de ação com aquela boa pitada de reviravoltas estilo novela mexicana, a história incluía diversos elementos como motocicletas, gangues, violência, álcool e, é claro, uma inconfundível trilha sonora, digna de amarrar todos os elementos de forma a dar vontade em qualquer um de tirar sua carteira A para sair com suas madeixas ao vento pelas BRs Brasil afora. Contando com participações de músicos como atores ao longo dos anos, nomes como Henry Rollins, Dave Navarro, Marilyn Manson, dentre outros, fizeram sua participação. Mas não era em rostos que o rock estava presente, e sim em uma curadoria única que juntou do blues, rock e country ao hard rock ao longo de sete temporadas até sua conclusão.

Entre as diversas nomeações, prêmios e nomes que consagraram a série como um prato cheio de hits e músicas que poderiam compor qualquer trilha sonora da sua próxima viagem, uma voz e, consequentemente, um nome se destacou, marcando referência e contribuindo em nove faixas espalhadas pelas temporadas, que se tornaram as favoritas dos fãs, como House of the Rising Sun, Come Join the Murder, Oh Darling, What Have I Done, dentre outras. Falo da inconfundível voz de Jake Smith, conhecido também como The White Buffalo.

Sons of Anarchy

Com uma carreira que estava em seus anos iniciais na época em que participou da série, Sons of Anarchy foi imprescindível para o crescente reconhecimento internacional do barítono americano, que encantou o mundo com seu Country/Rock, rendendo diversas turnês ao longo dos anos, mas sem nunca antes ter pisado em solo latino-americano — até este ano. Em maio, foi anunciada a turnê de estreia do músico por seis diferentes cidades, uma parceria entre as produtoras Powerline Music & Books com a Sellout Tours, onde, além de rápidos sold-outs, a demanda fez com que alguns locais recebessem upgrades, passando para casas maiores, como foi o caso de São Paulo, passando da Fabrique para o espaço Terra SP, onde o show aconteceu no último 06 de dezembro.

Uma aguardada espera de sete meses desde seu anúncio se encerrou na última ensolarada sexta-feira, resultando em uma fila que se iniciou cedo, entre roupas pretas com as siglas SOA (Sons of Anarchy), coletes, cerveja e motocicletas. Com abertura marcada para às 19h30, o talvez único ponto negativo da noite se deu pela grande espera entre a abertura da casa e o início do show, marcado para às 22h, sem banda de abertura, o que significou uma longa espera e ócio. No que se diz respeito à disposição do palco, tínhamos uma atípica formação em linha horizontal, compondo a bateria levemente elevada sob uma plataforma e dois microfones: o primeiro alinhado com dois violões na parte detrás e o segundo, com um teclado atrás e uma guitarra ao lado.

Uma composição diferente daquela usual dos shows que vemos com frequência, mas que deu espaço e destaque ao power trio que adentrou o recinto pontualmente, à medida que o telão dava espaço apenas para o logo The White Buffalo. Curiosamente, diferente do que estamos acostumados, onde o primeiro a adentrar e tomar posição é o baterista, foi justamente Jake Smith quem entrou sozinho, pegando um de seus violões e iniciando a noite com Wish It Was True, uma simples balada que, nas mãos e voz do músico, de simples não tinha nada.

Crédito: Luciano Benetton

Logo de cara, já foi possível ter um termômetro de “apertem os cintos, vocês não estão preparados para isso”. E, de fato, era hipnotizante ver o poder e a simplicidade de uma voz que roubava a atenção e os corações desde o primeiro instante, assim como a própria expressão de surpresa do músico ao ver uma casa cheia e grande, retribuindo aquela energia, gritos e competição entre público versus músico para ver quem cantava mais alto, algo que só a América Latina é capaz de proporcionar.

Foi em Love Song #1, segunda música da noite, que entrou Christopher Hoffe, guitarrista e tecladista, trazendo seu carisma, com direito a gingado, sorrisos e expressões de surpresa pelo retorno do público, e Matt Lynott, o “The Machine”, com seu taciturno chapéu que lhe dava uma atmosfera como se tivesse acabado de sair de um pub de jazz. Uma verdadeira máquina, fazendo jus ao nome, trazendo muita paixão a cada macetada que dava no frenético e cadenciado ritmo das músicas.

Crédito: Luciano Benetton

Já estávamos em Kingdom for a Fool, e era óbvio o grande nível musical de ambos, que conseguiam tranquilamente se equivaler a Jake Smith, mostrando que não estavam lá para lhe servir de apoio, mas sim para contribuir e tomar parte em igual importância, proporcionando uma experiência transcendental que parecia infinitamente melhor do que qualquer versão gravada em estúdio.

Em Set My Body Free, o público já estava rendido e tomado pela energia do trio, cantando e incessantemente ovacionando-os de forma que os mesmos pareciam até perdidos, em alguns momentos, sobre qual seria a reação certa. Afinal, a casa comportava uma média de até quatro vezes mais público do que o The White Buffalo está acostumado a tocar em suas turnês pelos Estados Unidos, majoritariamente em pubs e casas pequenas.

Outro fator que chamou a atenção era a própria energia de Jake Smith, que, apesar de seu grande porte, brincava indo e vindo de um lado para o outro do palco, girando com seu violão e até mesmo subindo e saltando, em alguns momentos, da plataforma da bateria, assim como Hoffe, que saltava de um lado para o outro, trazendo uma energia mágica ao show do começo ao fim.

As peripécias foram tantas que se teve o custo da alça do violão de Jake Smith se soltando de tempos em tempos, mas longe disso ser um problema para o mesmo, que parecia em completo êxtase em toda sua performance e simplicidade. Na metade do set, House of the Rising Sun deu as caras, mostrando toda a potência vocal monstruosa do músico, ainda que em uma mistura entre sua versão original pelo The Animals e a versão adaptada para Sons of Anarchy, uma licença poética interessante, ainda que gerando certa confusão para aqueles que esperavam ouvir a versão da série na íntegra.

Crédito: Luciano Benetton

Entre rápidas pausas para água, cerveja e pedidos de aplausos para seus companheiros, Jake manteve um contato próximo, ainda que rápido, com o público, fazendo sua música dizer sobre si mesmo mais do que qualquer outra coisa, conforme repassava por vários títulos de sua carreira que, sendo músicas de tempo curto, permitiram um setlist longo, ainda que dentro de um tempo de duração médio.

O público, que naquela altura já havia ido e voltado do céu inúmeras vezes, entre lágrimas e felicidade, mal teve tempo de se recompor e já se perdeu novamente aos gritos conforme chegava Come Join The Murder, outra clássica música da série, acompanhada pelo público em canto do começo ao fim em plena celebração.

Na sequência, tivemos ainda I Got You, música originalmente em parceria com Audra Mae, outra excelente cantora com passagem pela série, que gerou até um pequeno susto coletivo entre aqueles que acharam que teriam a feliz presença da cantora, mas que foi tocada integralmente por Smith. Após essa, iniciou seu inconfundível assovio, deixando claro o início de The Whistler, onde, se naquela altura alguém do público não tinha ido à loucura em vibração, agora estava selado tal destino.

Crédito: Luciano Benetton

Fechando com The Pilot, tivemos uma rápida despedida pré-encore, com um retorno igual ao início, somente com Jake entrando para tocar Highwayman, cover de Jimmy Webb, e fechar a noite com Damned e outra queridinha do público, Oh Darling, What Have I Done. A última foi estendida, permitindo ao público entoar em coro seu refrão, lavando a alma e fazendo da estreia do músico em solo brasileiro um momento para ficar registrado para sempre como uma grande noite e, facilmente, um dos shows do ano.

Após uma breve despedida, Christopher Hoffe ainda desceu do palco, cumprimentando e tirando fotos com todos os presentes, selando a noite como um verdadeiro show de simpatia e grande performance, que rendeu os corações e deixou um gostinho de quero mais.

Crédito: Luciano Benetton