Início Cobertura de Eventos Cobertura: Cryptopsy e Atheist (São Paulo/SP)

Cobertura: Cryptopsy e Atheist (São Paulo/SP)

Este vem sendo um excelente início de ano para os amantes do metal extremo, com ainda diversos eventos já confirmados nesta primeira metade do ano, que prometem manter as casas de shows ocupadas e os moshes cheios. E um bom exemplo de um desses dias se deu no último dia 21 de fevereiro, com o retorno de dois grandes nomes que não viam o solo brasileiro há um bom tempo.

De um lado, tínhamos o Atheist, banda formada no fim dos anos 80 nos EUA, que traz uma proposta bem diferente ao já nichado Death Metal Técnico, ao incorporar elementos de outros estilos como Rock Progressivo, Jazz e Thrash Metal, formando uma experiência sonora pouco usual. Do outro, o Cryptopsy, formado no início dos anos 90 no Canadá, com aquele estilo mais visceral, agressivo e sujo, porém com elementos técnicos, estruturas mais complexas e tempos quebrados.

Essa que marcou a segunda vinda, respectivamente, de cada banda ao Brasil se deu no Fabrique Club, com as portas marcadas para sua abertura às 19h, com o Atheist iniciando os trabalhos às 19h30. No interior, era possível logo de cara ver o stand de merch das bandas, que contava com as camisetas da turnê latino-americana e, logo à frente, o palco que terminava de ter seus últimos ajustes, com os camisas pretas espalhados pelo salão, cervejas à mão, em uma mistura de boa resenha com a antecipação dos shows da noite.

Poucos minutos passados do horário marcado, as luzes se apagavam ao som de In the Flesh do Pink Floyd, dando espaço para a psicodelia à medida que o logo do Atheist era projetado no backdrop do palco, onde, aos poucos, Dylan Marks (bateria), Yoav Ruiz-Feingold (baixo), Alex Haddad (guitarra) e Jerry Wintunsky (guitarra) entravam, iniciando com No Truth, clássico de Piece of Time, para a alegria dos fãs mais assíduos.

Já nos primeiros segundos, é inegável as referências que destoam a banda dentro do gênero, por te transpor à ideia de um show de progressivo, onde os ânimos te levam à calmaria e a uma viagem. A parte cósmica realmente esteve presente ao longo da noite, porém, com a entrada de Kelly Shaefer (vocal), a coisa tomava outro rumo. Unindo seu vocal agressivo aos guturais de Yoav nos backing vocals, calmaria não se tornava uma opção no que se pode ser definido apenas como uma brutalidade cósmica.

On the Slay, na sequência, já trazia uma pegada mais brutal, talvez até Thrash, onde só se via o dedo indicador de Yoav rodando, imediatamente demandando por aquele mosh, que timidamente foi aparecendo. Aqui, vale ressaltar a importância do baixista para o show como um todo, não somente nas linhas de baixo tão marcantes e seus slaps violentos, ou seu gutural de apoio, mas simplesmente toda a energia e agressividade que o músico trazia, correndo de um lado para o outro, pulando, chutando, batendo cabeça e até soltando um “vamos p*rra”, claramente já sinalizando um leve domínio pelo idioma brasileiro, hehe.

Sem dúvidas, era revigorante perceber o quão bem Shaefer se sentia em meio aos outros músicos, mais jovens e cheios de energia para entregar, desempenhando muitas vezes uma postura de carinho quase paternal, ora repousando sua mão sobre suas cabeças e ombros, ora instigando o público a aplaudir ou gritar pelos jovens que davam vida a um projeto mais antigo do que eles próprios, cujo Shaefer é o único membro-fundador remanescente.

Mantendo ainda a brutalidade e o ritmo alto, Unholy War trazia uma cadência crescente e frenética de tirar o fôlego, com os músicos trazendo extrema energia, Shaefer incluso, ao se manter em pé de igualdade com os demais membros. Water, na sequência, trazia um quê mais psicodélico novamente, que tão magistralmente mantém a identidade própria da banda, seja em ritmo lento ou rápido, ou em mudança de estilo, o que apenas gerava um maior envolvimento do público, que gritava e respondia à altura as provocações da banda a pedidos de interação.

Mesmo com Alex sofrendo alguns problemas técnicos em sua guitarra momentaneamente, era uma verdadeira inebriante viagem acompanhar a estrutura e harmonia dos instrumentos, que aqui, diga-se de passagem, estavam impecáveis, sendo possível ouvir tranquilamente todos os instrumentos, com destaque novamente para as linhas de baixo, que, sem sombra de dúvidas, eram o grande destaque, ainda que, é claro, contando com solos lindos e um ótimo ritmo da bateria.

Um show com poucas pausas e muitos agradecimentos, Kelly nitidamente se encontrava em um estado de alegria pura, entre os breves momentos em que comentou sobre seu português ser limitado ao “obrigado”, mas deixando claro seu carinho pelo Brasil. A apresentação, que mais parece apropriado chamar de um Death lisérgico, apesar de intercalada com momentos de pura brutalidade e energia, dava a sensação de se estar em um espaço em que ora você se veria a mil por hora, ora a cem, em velocidades e quebras diferentes, em uma verdadeira jornada cósmica, com o buraco negro do mosh fazendo o movimento gravitacional em seu entorno.

Outros pontos altos da apresentação ficaram a cargo de uma homenagem feita a Roger Patterson em I Deny, baixista e membro-fundador falecido em um acidente de carro em 91’, grande influência e, como já destacado ao longo da cobertura, pela presença marcante das linhas de baixo nas músicas, um elemento-chave, extremamente bem representado nas mãos de Yoav.

As queridinhas da noite, Unquestionable Presence, Mother Man e Piece of Time, foram a trinca final que colocou um fim à colorida e agressiva trip, retornando o público de volta à Terra e à sensação de tempo linear, à medida que a banda se despedia após certamente uma apresentação que ficará na memória e levará consigo vários adjetivos — sendo que monotonia não será um deles.

E mesmo com o fim do show, os ânimos não poderiam ficar mais calmos. Isso porque, para muitos, o ápice da noite aconteceria apenas poucos minutos depois, quando o Cryptopsy fazia sua entrada, pouco após as 21h, para trazer mais agressividade e Metal Extremo.

Liderado por Flo Mounier (bateria) e com Christian Donaldson nas guitarras, Remi LeGresley no baixo (substituindo Olivier Pinard, que está em turnê com o Cattle Decapitation) e Matt McGachy nos vocais, os membros adentraram o palco junto a um blackout completo das luzes, onde as primeiras notas de Slit Your Guts tomaram forma, anunciando o início da apresentação da Burn Into Pieces Tour.

Diferentemente do Atheist, que chama atenção pela diversidade sonora aliada à complexidade, o Cryptopsy, por sua vez, traz uma linearidade maior em termos de brutalidade e performance visceral. Guiado pela faixa de seu talvez álbum mais renomado, None So Vile, a apresentação foi caracterizada pelos arranjos técnicos e pela vocalização vinda do vazio de Matt — que só quem decorou as letras saberia dizer o que estava sendo dito —, pois, do contrário, seu tom já era o suficiente para se ter uma ideia do que se foi dito: gritos profundos e vocalizações infernais.

Com um set que alternou entre eras, como foi o caso de Lascivious Undivine, segunda música que compõe seu álbum mais recente, As Gomorrah Burns, tínhamos um vocal mais alinhado com o range de Matt, que alternava entre poderosos guturais e gritos agudos de tirar o fôlego (do público, porque ele aparentemente parecia estar conectado a um galão de oxigênio), enquanto o backdrop dava espaço para a imagem do álbum com o aterrorizante demônio de fumaça animado perante a cidade em chamas.

Mas o crédito não ficou todo ao vocalista: vale destacar Flo, único membro-fundador ainda ativo e uma das grandes referências devido à sua alta técnica e ritmo nas batidas e pedais duplos, que, apesar de toda a agressividade presente no som, parecia tocar com uma leveza invejável que é difícil de descrever. Não era como se suas batidas não contivessem força ou vontade, mas era algo tão fluido, cadenciado e preciso que, por sua feição serena, não aparentaria estar realizando tamanha complexidade rítmica.

Sem pausa para respiros, era curioso ver a discrepância entre a postura performática de Matt durante as músicas e seu jeito mais carismático e sorridente entre as pausas, mostrando a animação e energia por estar em nossas terras. Em alguns momentos, enquanto tocava, olhava para as primeiras fileiras e dava soquinhos para algumas pessoas, ainda que concentrado entre seus gritos brutais, como em Open Face Surgery, vinda direto dos recônditos de 94’, onde era possível sentir toda a agonia proporcionada pela música conforme os corpos se chocavam no mosh ao centro da casa. Acompanhando ainda sua presença imponente através da voz, Matt também repousava o pé em uma das caixas de retorno enquanto fazia um windmill (aquela girada de cabeça com as gigantes madeixas), o que poderia fazer quem estivesse mais leve precisar se segurar para não ser levado pela força da cena.

Outro destaque se deu em Serial Messiah, outra faixa de Blasphemy Made Flesh, com linhas de baixo marcantes que se destacavam ao longo da música. Mas talvez um dos pontos mais altos tenha sido em Godless Deceiver, uma música sobre os perigos das fake news, que contou a história de Fabiane Maria de Jesus, brutalmente espancada até a morte por moradores do Guarujá (SP) em 2014, após ser erroneamente acusada de sequestrar crianças para rituais de bruxaria com base em um boato infundado que circulou nas redes sociais. A canção não só retrata o lado obscuro e perigoso da internet, como também estabelece uma conexão direta entre a banda e o público brasileiro.

A trinca final ficou a cargo dos dois álbuns mais representativos da noite, com Flayed the Swine, Phobophile e Orgiastic Disembowelment, encerrando uma apresentação relativamente mais curta do que a anterior, mas sem menos impacto para os fãs, que gritavam e levantavam os horns para o céu em total aprovação à noite. Nas palavras de Matt, embora tenha sido direto sobre não haver encore, ressaltou que a banda queria descer para comemorar com os fãs — algo que figuras como Kelly Shaefer já faziam, circulando entre a galera no fundo da casa.

Com uma noite marcada por duas apresentações de peso, encerrando cedo o bastante para a alegria daqueles que correm para pegar o último metrô, a Burn Into Pieces Tour se mostrou outro grande acerto da Xaninho Discos e Caveira Velha Produções. Agora, resta apenas o aguardo por um breve retorno destas duas lendas do Death Metal Técnico para mais uma dose de brutalidade cósmica e agressividade visceral em terras brasileiras.

Setlist Atheist

In the Flesh ( Pink Floyd cover do sitema de PA)

  1. No Truth
  2. On They Slay
  3. Unholy War
  4. Water
  5. Mineral
  6. Enthralled in Essence
  7. Your Life’s Retribution
  8. Air
  9. Fire
  10. Brains
  11. Room With a View
  12. I Deny (dedicado a Roger Patterson)
  13. Unquestionable Presence
  14. Mother Man
  15. Piece of Time

Setlist Cryptopsy

  1. Slit Your Guts
  2. Lascivious Undivine
  3. Graves of the Fathers
  4. Sire of Sin
  5. Open Face Surgery
  6. Serial Messiah
  7. Godless Deceiver
  8. Benedictine Convulsions
  9. Flayed the Swine
  10. Phobophile
  11. Orgiastic Disembowelment