Quando você pensa em um show de Black Metal, qual é a imagem que vem à sua cabeça? Se você imaginou aquela atmosfera sombria, blasfêmica, com corpse paint, ocultismo e muita teatralidade, é apenas natural que pense assim, justamente por esses serem alguns dos elementos que compõem este subgênero do metal. Mas, assim como em quaisquer outras coisas na vida, as possibilidades são muitas, e, dentre elas, o Enslaved é uma banda que se destaca por ser pioneira em trazer propostas diferentes ao gênero.
Formada em 1991 por Ivar Bjørnson (guitarra rítmica) e Grutle Kjellson (vocal, baixo e sintetizadores), diretamente da Noruega, ainda que tenha iniciado no gênero com os elementos clássicos do Metal Extremo, não demorou tanto para a banda “desviar” desse caminho, forjando o seu próprio e dando uma característica única à sua sonoridade, não apenas em estúdio, mas também em suas performances ao vivo.
Isso foi exatamente o que pudemos experienciar na quarta vinda dos músicos ao Brasil, em passagem única por São Paulo, que ocorreu no Fabrique, na quinta-feira, dia 14 de novembro. Sim, os shows em meio de semana têm sido cada vez mais comuns por aqui, e não é para menos. A “gringaiada” entendeu mais do que nunca que o “Come to Brazil” é real e vale muito a pena.
Com a abertura da casa às 19h30, o interior do Fabrique contava com uma singela stand de merchandising, com uma linda opção de camiseta que rapidamente se esgotou, e uma previsão de início para as 21h, sem banda de abertura. Alguns minutos antes do horário do show, os integrantes passaram pelo público desavisado, indo diretamente à entrada lateral da casa para os preparativos e ajustes finais. Poucos minutos após as 21h, as figuras de Håkon Vinje (teclado), Arve “Ice Dale” Isdal (guitarra principal), Iver Sandøy (bateria), Ivar Bjørnson e Grutle Kjellson fizeram suas aparições para iniciar os trabalhos negros.
E logo na primeira batida até a última, imediatamente você percebia a sonoridade distinta do Enslaved, com complexos arranjos que iam muito além do tradicional Black Metal. Isso porque, ao longo dos anos, a banda incorporou elementos técnicos de Progressivo à sua música, transformando-a em uma verdadeira viagem obscura pela mitologia nórdica. Desde o início, já em Kingdom, faixa de abertura do show com um belo coro inicial, fica clara a decisão do Enslaved de se distanciar das temáticas clássicas do Black Metal, como ocultismo, magia negra, capetas e blasfêmia, e de se debruçar sobre a própria cultura dos nórdicos, com o bom e velho Odin.
Mas não se enganem. Apesar dos elementos de Prog e das temáticas da terra dos horns e hidromel, a agressividade e os poderosos guturais liderados por Kjellson se certificam de consolidar a atmosfera do Metal Extremo, ainda que este venha junto com a nevasca das terras gélidas. Frio este que até poderia estar presente em suas músicas, mas que estava muito longe de seus corações. Isso porque, se havia algo que a banda esbanjava, era muito carisma.
Entre Homebound e Forest Dweller, a banda animava o público, com os gritos de Kjellson e Ice Dale pedindo pela resposta da plateia, que correspondia à altura, e os olhares de Ivar, que, apesar de um semblante sério, sempre buscava uma interação ou outra com as pessoas da frente. Musicalmente falando, era lindo de ver as transições tanto de vocal — do gutural marcante de Kjellson para os seus limpos — quanto os de Håkon e Iver como vocais de apoio. Era fascinante observar um baterista tão comprometido com o ritmo, ora cadenciado e ora visceral, que ainda encontrava tempo para cantar. E, no meio disso tudo, havia Kjellson brincando no sintetizador ao lado de seu microfone. Fazia tempo que meus olhos não dançavam em um palco, e não por consequência de uma superprodução com lasers, brilhos, fumaças e fogo, mas pela própria qualidade e os elementos formados da composição da banda.
À medida que os músicos iam se sentindo mais confortáveis e se soltando, tivemos brincadeiras de Kjellson sobre aprender a dançar “Rumba” e as correções de Iver, dizendo que seria “Samba”, seguidas pela resposta de Kjellson sobre precisar aprender “mesmo assim”. O clima era leve. Reforçando o momento como sendo o “início de uma boa amizade” era visível o quanto o Enslaved se sentia bem, aquecendo e animando o público que gritava e aclamava os músicos. Não fosse pelos riffs pesados e os guturais marcantes, você talvez nem diria se tratar de um show de Black Metal.
Após Congelia, tivemos uma breve introdução ao quinteto de rufiões, que exalavam aquele bom humor digno de quinta série, sobrando até mesmo para Håkon Vinje, que, por ser o mais jovem da banda, com seus 32 anos, era alvo de brincadeiras pelos experientes integrantes. Mas, certamente, o momento mais marcante da noite foi durante Havenless, quando, antes de a banda iniciar os ritmos e batidas, todos os músicos se colocaram em posição com os braços abertos, entoando as primeiras frases da música em norueguês, criando uma atmosfera única sobre a canção que trata de viagens, não apenas físicas, mas espirituais. Já ao término de Fenris, os músicos fizeram a clássica saída pré-encore, mas não sem antes cumprimentar o público com soquinhos, apertos de mãos e high-fives.
Passados alguns minutos, Iver entrou agitando a galera, brincando e pedindo gritos que iam do mais baixo ao mais alto. Retornando à bateria, tivemos um super solo que reforçou o quão talentoso o norueguês realmente é, até o retorno completo da banda. O encore começou com Isa, música que, entre seus refrões, era entoada a todo pulmão pelo público. Isa, palavra que faz referência à runa nórdica simbolizando gelo, é também a faixa-título do álbum lançado em 2004.
Na sequência, fechando com chave de gelo, tivemos Allfǫðr Oðinn (“Allfather Odin” ou “Pai de Todos, Odin”), música que trouxe todo o júbilo do mais puro Black Metal voraz, com a voz característica do mais profundo submundo de Hel (o “Mundo dos Mortos” da cultura nórdica) de Kjellson. Essa canção, parte do primeiro EP da banda, mostra as raízes que tanto se aproximam do Black Metal clássico, mas já destacavam sua comunhão com Yggdrasil (a “Árvore da Vida” que conecta os mundos) e a preservação da cultura nórdica ao saudar o deus e pai de todos, Odin.
Apesar de uma apresentação enxuta, de cravadas uma hora que passaram voando, a qualidade absurda marcou o show. Os músicos ainda tiraram tempo para cumprimentar todos na primeira fileira, com sorrisos marcando uma quinta-feira em que, estranhamente, o frio do norte aqueceu os corações. Enslaved, em seu nome, não busca tratar apenas de uma escravidão ou subjugação física, mas, principalmente, espiritual e interna, vindo de um povo que viu sua cultura transformada com a chegada do cristianismo. E encontra, no Black Metal contemporâneo da banda, uma forma de se materializar e perpetuar através da música.
Setlist Enslaved
- Kingdom
- Homebound
- Forest Dweller
- Congelia
- The Dead Stare
- Havenless
- Fenris
- Isa
- Allfǫðr Oðin
Fotos por: Nanda Arantes (@nanda__arantes)