O fim de uma turnê e de uma jornada
Me parece natural começar a narrar a experiência de um show do Iron Maiden sem a necessidade de criar um contexto. Isso porque, e já chovendo no molhado, é um nome que carrega um peso por si só, não importa onde você esteja. Porém, a turnê The Future Past Tour, iniciada em 2023 e finalizada no último dia 7 de dezembro em São Paulo, não só marcou o fim de mais uma turnê de sucesso dos ingleses, mas celebrou o encerramento de uma magistral jornada de 42 anos de Nicko McBrain (bateria), oficialmente se aposentando da vida de turnês (não necessariamente da banda em si), fazendo deste um momento a ser marcado na história.
Com destaque para o álbum Senjutsu, de 2021, e Somewhere in Time, de 1986, a proposta de The Future Past Tour pareceu brincar com a temporalidade. Por um lado, o álbum de 86 apresentava um conceito Cyberpunk, típico da visão de futuro dos anos 80, enquanto o mais recente traz histórias sobre o passado. Ligação que se une pelo nome da turnê e traça uma relação entre as diferentes fases e momentos da banda.
Seu começo já havia sido conturbado, logo no início de 2023, pelo anúncio do acometimento de um Acidente Isquêmico Transitório (AIT), ou um “mini-AVC”, em Nicko, o paralisando do ombro à mão do lado direito e gerando incertezas sobre seu futuro na banda. Após semanas de reabilitação, o músico e a banda decidiram prosseguir com sua presença, mostrando muita tenacidade e desejo de estar junto à sua equipe. Em preparação para a longa turnê, a banda adaptou todo o setlist de forma a acomodar as limitações do companheiro, tornando este momento possível, mas sem cair em qualidade, ao dar espaço a diferentes títulos que firmaram uma ótima proposta para os fãs que curtem além dos grandes hits.
Mas antes de comentar sobre essas canções, iniciemos pelo dia 7 de dezembro em si, onde, assim como no dia anterior, logo cedo já começava o aglutinar de corpos, com camisas pretas e barbas grisalhas ansiosas para acompanhar uma das maiores lendas do Heavy Metal. Para a felicidade daqueles que se digladiavam para fugir do intenso sol, os portões se anteciparam a abrir, quase 20 minutos antes do previsto, às 15h40, fazendo com que a manada enlouquecida de fãs começasse a adentrar entre gritos e horns ao ar. Com os ânimos à flor da pele, o rosto das pessoas era um misto de ansiedade e emoção pela notícia de que aquele seria o último show de Nicko, divulgada pela página do Iron logo pela manhã.
Um aquecimento que unia estilos
Lá dentro, as pessoas se dividiram entre aquelas que iam relaxando e se sentando ao longo do chão das pistas e cadeiras, enquanto outras passeavam pelo stand de merchandising ou tiravam fotos com uma ativação do Eddie, logo ao lado. O clima era de muita ansiedade e espera, afinal, ainda se teriam boas horas pela frente até o marcar das 19h10 pelo relógio, momento em que os dinamarqueses do Volbeat subiram ao palco ao som de Born to Raise Hell, do Motörhead.
Desconhecidos por muitos, o power trio que, em turnê, se torna um quarteto, tem grande reconhecimento mundo afora. Em atividade desde o início dos anos 2000, misturam Heavy Metal com melodias ora mais pesadas, ora mais leves, e com cadências que flertam com o Rockabilly e o Hard Rock; sempre com a voz limpa e agradável de Michael Poulsen (voz/guitarra), que, com o clássico “São Paulo, make some noise” (Façam barulho, São Paulo!), pediu pela energia do público, que não teve resistência em retornar ao pedido.
Iniciando a rotina com The Devil’s Bleeding Crown, uma primeira olhada já era suficiente para reconhecer o carinho de Poulsen pelo público, que trajava uma camiseta escrita “Cavalera”, um tributo já inaugurado no dia anterior, quando apareceu com uma camiseta do Sepultura. Entre riffs e uma mistura de estilos já característicos da banda, a sensação era de estarmos naquelas festas de piscina de filmes, com os músicos cheios de energia, indo de um lado para o outro e interagindo com os fãs, ainda que em um espaço um pouco mais contido devido ao pré-arranjo do palco do Maiden.
Em Sad Man’s Tongue, entrava um violão e Poulsen iniciava a música com o leve disclaimer sobre ser um grande fã de Johnny Cash, proporcionando uma curiosa e rápida mudança de estilos, conforme as notas pareciam transportar para a era de ouro, com a própria música quebrando sua cadência na sequência e mesclando elementos de Heavy Metal ao se tornar mais agressiva, em uma curiosa e interessante harmonia.
Saltos, danças e muito bate-cabeça marcaram a performance do Volbeat, havendo espaço também para muita emoção e drama, como foi com a chegada de Fallen, música dedicada ao pai de Poulsen, já falecido, e que teve um profundo impacto em suas referências e gostos musicais. A cadência do show, do começo ao fim, foi apresentada com dinamismo, passando por todos os sentimentos e emoções em uma divertida construção, com doze músicas marcadas para a noite. Um destaque igual vai para Jon Larsen na bateria, Kasper Larsen no baixo e Flamming Lund (guitarra), que deram um show de simpatia e muita atitude na segunda passagem da banda pelo Brasil. A primeira ocorreu em 2018, no Lollapalooza, restando a dúvida se, após estes shows e a clara resposta positiva do público, será o suficiente para os produtores começarem a elencar o nome da banda para mais retornos em nossas terras. O Volbeat, diga-se de passagem, parecia extremamente honrado e orgulhoso por sua participação como abertura para a Donzela de Ferro.
Doutor, Doutor, por favor
Dessa vez, uma rápida espera, e, quando os relógios marcaram 20h52, as luzes se apagaram, dando espaço para Doctor Doctor, música do UFO, característica utilizada pelo Maiden em suas aberturas. À medida que a atmosfera se formava e a ansiedade aumentava, a música de encerramento do filme Blade Runner começou a tocar, enquanto os roadies arrancavam os tecidos, revelando a estrutura do palco junto ao jogo de luzes, que rapidamente transportou o público para o futuro de Somewhere in Time. Pouco a pouco, e em meio aos gritos, chegava o sexteto, que, logo de cara, iniciava com Caught Somewhere in Time, música que, antes da turnê, não via os palcos desde 1987.
Era apenas o começo, mas o público já ia à loucura ao vislumbrar os músicos se posicionando. Entre sorrisos e muito ânimo, mostravam que idade é só um número. E se havia alguém que exemplificava bem isso, era a energia 220V de Bruce Dickinson (vocal), correndo de um lado para o outro, jogando o microfone enquanto girava sua haste e, claro, mostrando sua poderosa e icônica voz, que parece envelhecer como vinho. Se teve algo que mal se pôde ouvir ao longo do show, foram os conhecidos “Scream for me, São Paulo!” (Grite para mim, São Paulo!), abafados pelo público que só o que fazia era gritar.
Mas nem a presença do frontman, nem as peripécias de Janick Gers (guitarra)—ora jogando sua perna para o alto, ora sentando na caixa de som, entre pulos e rodopios—ou as caras e bocas de Steve Harris com suas clássicas apontadas com o baixo; nem os solos sinistros de Dave Murray, sempre esboçando um sorriso; nem a ginga de Adrian Smith (guitarra)… Nem mesmo a aparição do Eddie pistoleiro-futurista em Stranger in a Strange Land, outra faixa que não via vida também desde 1987, conseguiram tirar a atenção do público do homem sentado atrás das gloriosas torres e hastes de metal, entre seus pratos e bumbos da bateria: Sir Nicko McBrain.
Um espetáculo para um homem só
Ovacionado desde o primeiro instante até o último, seu semblante exalava uma mistura de sentimentos impossíveis de serem captados e transpostos em texto. Afinal, se iniciava o começo de um fim, uma última dança de 42 anos, entre muitas histórias que nem todos os DVDs, biografias e resenhas em pubs antigos da terra da rainha podem contar em sua totalidade. Só posso dizer que existem momentos na vida em que não é preciso pensar ou dizer muito diante de uma situação. Este era um desses momentos, onde, enquanto Nicko se preocupava em oferecer o melhor de seu último trabalho, o público se concentrava apenas nos gritos de “Nicko! Nicko! Nicko!”, que tornavam quase inaudíveis as falas de Bruce. Ele comentou sobre o anúncio e pediu que a noite fosse uma comemoração global pela vida e legado de seu companheiro.
Chegou um momento em que Bruce parecia até desistir de seu monólogo e apenas acompanhou o público em seu “Olê, olê, olê, olê… Nicko! Nicko!”, esboçando um grande sorriso, tal qual o baterista, que se levantou em agradecimento ao carinho dos fãs que perdurou entre cada intervalo das músicas durante o show. Não sei o que normalmente está escrito na parede, como bem diz a tradução literal de The Writing on the Wall, mas sei que, naquela noite, ao menos, os dizeres “Obrigado, Nicko” certamente estariam.
E foi justamente inaugurando uma trinca que nos transportou ao futuro com um olhar no passado de Senjutsu que tivemos The Writing on the Wall, Days of Future Past e The Time Machine, músicas já afiadas na ponta da língua de todos. Emoção passada, a pauleira e a intensidade do som foram tomando forma, e, em The Time Machine, Bruce voltou a falar que naquela noite iríamos viajar por diversos anos: 1975, 1986 e 2021, em alusão a alguns álbuns da banda. Para que a máquina funcionasse, ele disse que seria necessário o poder sísmico de um bom pulo para recarregar sua energia. E, é aquilo, né? O homem pediu, o público obedeceu.
Entre pulos e mais pulos, e uma grande disputa entre a voz de Bruce e a dos fãs, chegou The Prisoner, única música tocada do The Number of the Beast. Com uma introdução em vídeo, destaca-se a complementariedade entre o espaço do telão para a reprodução de imagens nas laterais e a teatralidade das bandeiras centrais que, a cada música, valseavam, apontando a nova fase em que entrávamos à medida que o setlist avançava. Definitivamente, uma produção mais enxuta, diga-se de passagem, do que a última passagem do Maiden, em 2022, mas que trazia em si todo um charme próprio.
Heavy metal sem tempo para respirar
Talvez um dos pontos altos da noite, Death of the Celts retornava ao Senjutsu, proporcionando um dos solos mais eletrizantes e marcantes entre os três guitarristas em diferentes momentos, com certeza angariando novos aspirantes ao instrumento após sua conclusão. Era impressionante como, dependendo da bandeira “virada” ao fundo, com o passar das músicas, tal qual um livro folheado, o público já ia à loucura antes mesmo de qualquer batida ser proferida, justamente por saber o que viria. Neste caso, um dos primeiros grandes hits da noite, Can I Play With Madness, do Seventh Son of a Seventh Son, foi praticamente uma expressão literal, com o público enlouquecendo cada vez mais, para o sorriso de cada integrante, principalmente de Bruce, que visivelmente se deleitava ao perceber que brincava com o Allianz Parque lotado em suas mãos.
De volta ao Somewhere in Time, mas com uma faixa mais comum, Heaven Can Wait trouxe todo o peso e o drama, com um Bruce Dickinson subindo pelas estruturas do palco enquanto provocava o recém-aparecido Eddie pistoleiro-futurista, culminando em uma troca de tiros-rojões ao som dos riffs mais pesados que você possa imaginar. E, se o momento por si só não fosse o bastante, na sequência veio Alexander the Great, a tão aguardada música que transformava todos os presentes em verdadeiros pretorianos de uma Roma antiga. Nem é preciso dizer que o tão esperado momento ressoava por todo o estádio, ao mesmo tempo em que as respirações se seguravam ao ouvir o forte refrão que aclamava o nome do antigo rei de outrora, sendo finalizado ainda com uma nota sustentada por Bruce que durou, pasmem, mais de 20 segundos.
Vamos respirar? Vamos nada! Pois entrava em cena a clássica imagem do Eddie meio-árvore retorcida sob o crepúsculo azul. Era hora de cantar a plenos pulmões Fear of the Dark, música que, desde as notas mais simples de guitarra, trazia os “ÔôÔôÔô” do público para comandar o ritmo em auxílio aos músicos. Com Gers e Harris aos pulos no refrão, provavelmente causando pequenos tremores nos arredores do Allianz Parque, o público os acompanhava sem descanso. E, antes que o primeiro respiro pudesse sequer vir, chegou para fechar o bloco principal Iron Maiden, música do álbum Iron Maiden, tocada pelo Iron Maiden, rs. Outra queridinha dos fãs, não era apenas uma música que trazia energia e animação, mas também um espetáculo visual. Entre as puxadas de guitarra, adentrava Eddie em sua versão samurai. À medida que nosso querido monstro-samurai brandia sua espada, dando soquinhos no ar, a cada batida de bateria, os “Hey, hey, hey’s” do público seguiam firmes, enquanto uma enorme cabeça vermelha inflável do próprio Eddie crescia na parte traseira do palco.
Uma chuva de estímulos visuais tomou conta da plateia. Eddie concentrava seu olhar e atenção em Janick Gers, que não parava quieto um segundo, girando sua guitarra como um bambolê pelo corpo, rodopiando, chutando, arremessando-a ao ar, fazendo tudo que, em mãos menos habilidosas, teria resultado em desastres. Mas, com Janick, o instrumento se tornava uma extensão de um show acrobático, sem perder sequer uma nota. Passando ainda por entre as pernas de Eddie e até tomando umas espadadas no processo, rapidamente vieram as primeiras labaredas de fogo. Ao término, Bruce fechou com o clássico “Nós vemos em breve”, brincando sobre um breve retorno, em alusão à próxima turnê já marcada. Assim como nos outros momentos do show, tudo o que se ouvia do público eram os gritos de “Nicko, Nicko, Nicko!”, enquanto os integrantes saíam do palco, deixando por último o homem da noite, que, entre arremessos de baquetas e peles, se retirava em profundo agradecimento.
Retorno vindo do inferno e um adeus doloroso
O “surpreendente” retorno foi marcado por Dave Murray puxando as primeiras notas de Hell on Earth, trazendo o peso dos mais recônditos círculos infernais, enquanto a música compensava a ausência de pirotecnia nos primeiros atos com explosões e labaredas que acompanhavam cada nota mais agressiva. Fogo, fogo e mais fogo. Fogos curtos, fogos médios e fogos que rodopiavam. Essa era a base do cenário entre os poderosos riffs, solos, batidas e momentos de calmaria, finalizados ainda com uma valsa de braços que iam de um lado para o outro, conforme as últimas notas eram tocadas. Então, saia de cena Bruce, e todos os integrantes se concentravam na bateria. Quando surgiu no backdrop o clássico Eddie soldado, o público já se agitava, com as rodas começando a se formar e os guitarristas e baixista indo à frente para tocar as primeiras notas de The Trooper. Bruce subia à parte superior da estrutura, indo de um lado para o outro e animando o público, que despejou até a última gota de energia no refrão, com os “ÔôÔôÔô” ecoando de forma ensurdecedora.
E, entre palmas, como tudo que é bom precisa de um fim, os primeiros ritmos de Wasted Years chegaram, com um público que cantou da primeira à última nota em completo júbilo. Não sei quais seriam os tais “anos desperdiçados” (título da faixa), mas certamente este ano, que teve o show do Iron Maiden, não foi um deles. Conforme as últimas notas rolavam, o público, em profunda gratidão, entre gritos e palmas, puxava novamente o nome do baterista, que era ovacionado enquanto palhetas e munhequeiras eram arremessadas ao público.
Após a tradicional foto em grupo, Bruce puxou três “Hip, hip, hurrays!” em homenagem ao colega, despedindo-se mais uma vez. Assim como na primeira despedida, quem ficou foi o inconfundível sorriso de Nicko McBrain, que correu de um lado para o outro do palco, saudando os fãs enquanto era saudado. As palmas, gritos e elogios continuaram mesmo após sua saída e a entrada de Always Look on the Bright Side of Life, clássico do Monty Python, que tocava pelo sistema de som. Os assovios da música serviam para encobrir as lágrimas de emoção dos fãs que, por um lado, já tinham motivos para comemorar com o anúncio do retorno do Iron Maiden, provavelmente em 2026 por aqui para a Run For Your Lives – World Tour, celebrando os 50 anos de estrada; mas, por outro, sabiam que esta turnê marcou a virada de uma página e o adeus aos palcos de um grande titã das baterias.