Não existe um dia melhor para blasfemar do que um sábado ensolarado na cidade de São Paulo, especialmente em um local volumoso, porém intimista, como o Carioca Club. E era lá que uma tranquila fila se formava, com os fãs mais assíduos do Rotting Christ desembocando já pela manhã, dispostos a enfrentar o calor em prol da banda, que retornava ao Brasil em menos de um ano para uma grande turnê passando por dez cidades brasileiras.
O quarteto vindo da Grécia havia chegado logo cedo para a passagem de som, onde já aproveitaram para atender prontamente os fãs presentes, entre fotos, assinaturas e sorrisos, em um dia de celebração do Metal Extremo. À medida que o dia corria e o sol se punha, às pontuais 17h, os portões obscuros se abriam, repousando o cálido manto gélido do ar-condicionado sobre aqueles que se postavam adentro.
Logo de cara, era possível distinguir não uma, mas duas stands de merchandising: uma logo na entrada e outra ao fundo, disponibilizando os mais diversos artigos, que iam de camisetas a bandeiras, patches, pins e até o interessantíssimo livro biográfico da banda, Non Serviam. Enquanto algumas pessoas aproveitavam a casa ainda menos cheia para adquirir suas peças de coleção, outros corriam em direção a uma cerveja gelada, e a pequena maioria se postava sob a linha da grade, ante ao palco.
Um acerto que é preciso destacar aqui se deu no cronograma do dia: extremamente dinâmico e satisfatório, proporcionando uma ótima forma de evitar o cansaço e ainda permitir um breve retorno para casa. Digo isso porque, assim que os relógios bateram 18h, as cortinas se abriram, dando lugar ao Miasthenia, banda convidada para iniciar a ritualística da noite, trazendo o melhor do Black Metal pagão nacional, na ativa há mais de 30 anos espalhando as palavras proibidas.
Formado por Hécate (vocais/teclado), Thormianak (guitarra), Aletéa (baixo) e Lilith (bateria), o grupo traz uma proposta extremamente rica e diferente ao incorporar o Black Metal com letras em português que narram contos e histórias pré-colombianas, sendo não apenas uma forma de perpetuar nossa cultura, mas também um símbolo de resistência entre as figuras e mitologias que a compõem.
Apresentando um set composto por músicas de seu último álbum, Espíritos Rupestres, lançado em 2024, logo em Evocação aqueles que não eram familiarizados com a banda puderam ter um gostinho do seu diferencial. A sonoridade prende a atenção e se destaca tanto pelo conteúdo lírico, como comentado anteriormente, quanto pela teatralidade e performance. As atenções eram roubadas por Hécate, que, mesmo se mantendo imóvel ao longo do show devido ao uso dos teclados, se fazia totalmente expansiva e em movimento através de seus olhares e feições. O corpse paint com elementos nativos elevava ainda mais o grau de simbolismo presente.
Já em Bruxa Xamã, tivemos uma grande aula de história e uma introdução ao próprio conceito do álbum, resgatando a Guerra dos Bárbaros, conflito ocorrido no Nordeste brasileiro entre os séculos XVII e XVIII, marcado pela resistência do povo Tapuia contra os colonizadores portugueses. Nem é preciso dizer o sentimento atmosférico que tomava o Carioca ao absorver esse tipo de narrativa, somada aos berros e fortes riffs que pareciam dar vida aos tempos antigos.
Em Espíritos Rupestres, a ecoação do refrão que carrega o nome da música parecia entrar na mente, hipnotizando e tornando aquele momento a mais pura ritualística ancestral. Seguido ainda de um grande solo de Thormianak, que arrancou gritos e aplausos de um público que aumentava a cada minuto.
Com um setlist curto, porém riquíssimo em termos de apresentação efetiva da banda, os músicos ainda tomaram um tempo para agradecer a oportunidade, sendo ovacionados pelos presentes. Também houve a apresentação dos membros e a explicação sobre a ausência de Lilith nos palcos, com a substituição por Riti Santiago, que cumpriu a tarefa à altura.
Agora, os ânimos iam se acumulando e os corpos começavam a se espremer no que seria uma curta espera. Marcado para 19h15, com um ligeiro atraso de pouco mais de 15 minutos, as cortinas se abriram para um palco de atmosfera mais sinistra, ao som das batidas da intro, que precediam os gritos de um público que já não se aguentava mais de animação. Os primeiros segundos serviram perfeitamente para dar um pequeno gosto do que esperar de uma performance do Rotting Christ — algo que foge, e muito, da estereotipada ideia de como é um show de Black Metal.
Formado pelos irmãos Sakis Tolis (vocal/guitarra) e Themis Tolis (bateria), e com o apoio nas turnês de Kostas Heliotis (baixo) e Kostis Foukarakis (guitarra), há muitos anos o Rotting Christ transcendeu o Black Metal característico, incorporando em seu som outros elementos, navegando de vozes limpas a coros épicos e o uso de referências mais próximas do Gothic Metal, em uma abordagem que contempla a mitologia grega e a cultura de sua terra natal.
A importância desse “disclaimer” se dá justamente pelo fato de o destaque não ficar “apenas” em sua sonoridade, mas alcançar sua performance, que acaba sendo a antítese do que se espera de um show de Black Metal. Abrindo com Aelo, Sakis já surpreendeu ao puxar um “1,2,3,4…” em perfeito português, seguido da selvageria dos riffs e do bate-cabeça que rolava entre público e artistas. E haja bate-cabeça, personificado na figura de Kostas, que fazia um windmill tão intenso que parecia que, a qualquer momento, as primeiras fileiras alçariam voo, tal como Ícaro.
Pretty Worlds, Pretty Dies, a segunda música e primeira a ser tocada do último álbum, Pro Xristou — grande motivo para a rápida vinda dos gregos novamente a nossas terras —, serviu para sedimentar ainda mais essa dinâmica performática helenista que transbordou emoção, conectando rapidamente o público e fazendo do primeiro ao último cidadão no espaço se movimentar freneticamente entre gritos e os famosos “chifres” ao ar.
Todo intervalo servia como motivo para uma rápida interação de Sakis com o público, clamando pelos “irmãos e irmãs” de São Paulo para bater palmas ou entoar os “hey, hey, hey’s” que, somados a uma iluminação diversa, mas majoritariamente quente, criavam uma atmosfera que, não fossem os berros, pedais duplos e riffs fortes, faria qualquer um questionar o subgênero da banda.
Outros pontos altos do início da apresentação ficaram por conta de Kata Ton Daimona Eaytoy — grego antigo para “De acordo com a sua própria vontade”, frase atribuída a Sócrates —, onde parte de seus cânticos eram entoados pela multidão de fãs a incentivo da banda. Diferentemente de outros shows, nos quais a sensação seria a de um ritual profano, aqui o sentimento se assemelhava mais a uma fileira espartana de bate-cabeça em pleno coro.
Vale o destaque para Kostas, que a todo momento provocava a plateia de cima a baixo, tirando 110% de todos enquanto entregava 200% de si. Aliás, todos no palco buscavam se conectar com o público de alguma forma, fosse por olhares, palavras, gritos ou batidas de cabeça, inflamando cada vez mais uma plateia totalmente rendida desde o início.
Destaque também para Like Father, Like Son, outra (e última) do álbum Pro Xristou, que, desde seu lançamento como single, se tornou uma das favoritas dos fãs — algo que se confirmava pela forma como os presentes cantavam em coro, apoiando Sakis.
Importante ressaltar que, desde o início da apresentação, era possível notar breves pausas em que o vocalista tossia, reforçando a ideia de uma possível condição adquirida nesta corrida de turnês e em um solo climático tão diverso quanto o do Brasil. Mas, mesmo com seu microfone levemente mais recuado, ainda assim era impressionante o seu manejo vocal, com espaço para poderosos gritos ao longo da noite.
Com um público totalmente entregue, que não media esforços entre puxadas de “Rotting Christ! Rotting Christ!” entre as músicas, tivemos também coros de “ÔôôÔôôôôôÔô” — como em King of a Stellar War, que marcava metade da apresentação e a crescente diversificação do setlist dentro da discografia da banda —, algo curioso de se notar era a minimização do álbum que encabeçava a turnê. No entanto, isso era compreensível, dado o longo e rico acervo do grupo.
Antes do início de The Sign of Evil Existence, tivemos ainda a surpresa da presença de Armando Beelzeebubth, guitarrista da lendária Mystifier, grande nome do tesouro nacional underground, que desde o fim da década de 80 traz uma representatividade ímpar em diversos níveis para a subcultura. Ele assumiu momentaneamente o baixo para dar continuidade à sessão da missa negra grega.
Outro destaque ficou para Societas Satanas, uma das queridinhas dos fãs, sempre presente no rodízio do setlist da banda. A música, originalmente da Thou Art Lord, conta com a participação do próprio Necromayhem — mais conhecido como Sakis Tolis, rs.

Já caminhando para as músicas finais, mas com um público que estava longe de aparentar cansaço, o Rotting Christ Experience a essa altura era um show marcado tanto por elementos de Black Metal clássico e mais cru quanto por passagens épicas e atmosféricas. As interações eram constantes, e a presença de palco da banda fazia com que cada segundo da performance fosse intenso.
Neste ponto, retornamos ao misticismo com In Yumen-Xibalba, referência ao paganismo maia, com riffs que preparavam o terreno para o petardo Grandis Spiritus Diavolos, um hino satânico com cânticos corais épicos. Era impossível não cantar junto, e, se alguém ainda não havia assinado seu contrato profano, certamente essa música tirava qualquer dúvida.
Foi então que The Raven trouxe uma atmosfera mais melancólica, naquele equilíbrio que vai desacelerando os BPMs do coração, preparando para o desfecho do show. Após a música, a banda fez uma rápida saída do palco, levando os fãs a se manifestarem em não aceitação do fim da noite.
Depois de alguns minutos, Sakis emergiu sorridente, questionando se o público estava pronto para uma última canção. O bis veio na forma de Noctis Era, selando o fim da apresentação com um último bate-cabeça coletivo antes da clássica despedida, com direito a palhetas, acenos, sorrisos e a promessa de um breve retorno.
Porém, engana-se quem achou que esse era o verdadeiro fim da noite. Apesar da possibilidade de voltar para casa mais cedo (amém), como prometido, muitos permaneceram para o meet and greet gratuito anunciado pela banda. Era possível ver os fãs mais ávidos segurando seus discos, LPs, livros e itens para uma breve interação com os gregos.
Quem ficou até o fim ainda teve uma surpresa: a possibilidade de tirar uma foto com Daniel Erlandsson, baterista do Arch Enemy, que, para a surpresa de todos, estava no recinto acompanhando o show do Rotting Christ.
Saímos desse dia com a certeza de que o solo brasileiro já é um dos queridinhos da banda, o que deve ser um ótimo sinal para os fãs que aguardam um retorno. Outra certeza que ficou foi a de que a experiência desse show reconfigura o que se espera do Black Metal clássico, mostrando que há muita versatilidade dentro do subgênero — e que isso, definitivamente, não é visto com maus olhos.
Setlist Miasthenia
1. Evocação
2. Bruxa Xamã
3. Espíritos Rupestres
4. Tapuia Marcha
5. Transmutação
Setlist Rotting Christ
Intro
1. Aelo
2. Pretty World, Pretty Dies
3. Demonon Vrosis
4. Kata Ton Daimona Eaytoy
5. Like Father, Like Son
6. Elthe Kyrie
7. King of a Stellar War
8. The Sign of Evil Existence – particiação de Beelzeebubth, do Mystifier
9. Non Serviam
10. Societas Satanas – Thou Art Lord cover
11. In Yumen-Xibalba
12. Grandis Spiritus Diavolos
13. The Raven
Encore
14. Noctis Era