Mayhem é uma daquelas bandas que são mais conhecidas por suas polêmicas e lendas em torno do que propriamente por suas obras.
Aliás, creio que toda a cena do Black Metal norueguês dos anos 90 acaba por sofrer desta condição, graças às peripécias e “capirotagens” de adolescentes mimados que queriam, a todo custo, chocar uma sociedade perfeita em um país de primeiro mundo.
Todas essas desventuras estão em voga atualmente, e você amigo leitor, que por acaso se interessar pelo tema, pode encontrar facilmente mais detalhes sobre o que descrevo em filmes (Lords Of Chaos) e livros (Lords of Chaos: A sangrenta história do metal satânico underground).
Mas, apesar da postura extremista e pensamentos pra lá de condenáveis (deméritos que não esmiuçarei neste texto), deve-se reconhecer que essa turma soube externar todos estes sentimentos a partir da música, definindo e popularizando uma nova vertente dentro do metal iniciada por bandas como Venom, Bathory e Celtic Frost. Era o início do famigerado True Norwegian Black Metal.
Entre tantas personalidades dentro deste movimento (sério, dá para montar um álbum de figurinhas só com esses caras), uma das mais icônicas foi o guitarrista Øystein Aarseth, também conhecido pelo pseudônimo de Euronymous, que no ano de 1984 ao lado do baixista Necrobutcher e o baterista Manheim fundou o Mayhem. O nome do grupo veio da música Mayhem with Mercy quarta faixa do debut do Venom, o Welcome to Hell (1981).
A primeira demo do grupo não tardou a sair, e foi em 1986 que, Pure Fucking Armaggedon, produzida de forma totalmente caseira e contando com o revezamento de vocais entre baixista e guitarrista, fora lançada em formato k7 em uma limitadíssima tiragem de apenas 100 cópias. Curiosamente, a arte da capa vem de uma famosa obra intitulada O Cristo Torturado do escultor brasileiro Guido Rocha (1933-2007). Essa não seria a única vez que a banda incorporaria algo brasileiro em obras…
O ano seguinte foi marcante para o Mayhem e foi marcado pela chegada do vocalista Maniac. E assim, no dia 16 de agosto de 1987 os noruegueses lançavam o emblemático EP Deathcrush, que proporcionou à banda uma boa visibilidade, atraindo assim os primeiros fãs. Com pouco mais de 18 minutos, as oito faixas trazem ainda o som cru e visceral que haveria de se intensificar futuramente no som do grupo. Ele foi lançado pela gravadora Posercorpse, ganhando futuramente uma reedição pela Deathlike Silence, selo independente criado por Euronymous, que possuía uma loja na cidade de Oslo chamada Helvete (obviamente financiada pelos pais).
Apesar dos frutos colhidos com a boa recepção do primeiro Ep, os membros da banda expulsaram Maniac por vícios que prejudicavam tanto as performances ao vivo quanto a convivência em grupo. O próximo a deixar a banda seria Manhein, que abandonava o barco em busca de um trabalho que lhe rendesse uma renda fixa (quem nunca, não?).
Em seu lugar fora recrutado o baterista Jan Axel Blomberg, mais conhecido como Hellhammer.
Encontrar um novo frontman para o Mayhem foi uma tarefa árdua, porém, que não tardou para acontecer. Per Yngve Ohlin, Dead para os íntimos, se candidatou à vaga através de uma fita enviada à banda de uma forma nada convencional, colocando um rato amarrado em uma pequena cruz junto ao pacote que continha a fita que serviria como audição. Ele se juntou ao grupo em 1988.
Vindo da Suécia, o jovem vocalista havia deixado o Morbid, grupo que integrou em 1986 e que gravou uma única demo, intitulada December Moon.
Obcecado pela morte desde a recuperação de um trauma sofrido na infância, Per foi um dos precursores do uso do Corpse Paint,emblemática pintura corporal usada hoje quase como um uniforme por toda banda de Black Metal que se preze.
A ideia da maquiagem é simular uma aparência cadavérica. O cantor era tão fascinado por essa ideia, que enterrava as roupas que vestia nos shows dias antes das apresentações, perfumando-se assim, com o cheiro dos mortos.
Há quem diga que este tipo de pintura foi popularizado pela banda mineira Sarcófago com o lançamento de I.N.R.I primeiro álbum do grupo considerado uma grande influência do gênero mundialmente (o que não é impossível, uma vez que, pode-se ver um patch da banda na jaqueta de Dead em um vídeo de ensaios da época).
Dead foi peça predominante para a existência do álbum que irei dissecar neste texto, uma vez que, grande parte das temáticas líricas das composições presentes na obra é de autoria dele. Ele cometeu suicídio no dia oito de abril de 1991, cortando os pulsos e atirando contra a própria cabeça com uma espingarda. Seu corpo foi encontrado por Euronymous em um dos cômodos da casa que dividiam na época. Muitas lendas e galhofadas sobre este acontecimento são espalhadas até hoje pela internet.
O guitarrista ao invés de chamar a polícia, correu para apanhar uma câmera e tirou fotos do cadáver. Ele tinha a intenção de usar a tragédia do companheiro de banda como marketing para o Mayhem, coisa que de fato aconteceu. A imagem tornou-se capa de um “bootleg” ao vivo chamado Dawn of the Black Hearts (1995).
A atitude estúpida de Euronymous trouxe consequências ainda maiores.
Revoltado, o baixista Necrobutcher deixou a banda, prometendo nunca retornar enquanto o mórbido material ainda existisse. Para seu lugar, um ser muito conhecido recentemente na internet (não pelos motivos certos), tomou o posto das quatro cordas. Varg Vikernes, que na época também atuava com um projeto próprio, o Burzum.
Aarseth ainda recrutou mais um guitarrista para a banda, Snore Ruch. Mal sabia ele, que os mais novos integrantes seriam seus algozes em um futuro não muito distante…
Substituindo Dead nos vocais, o húngaro Attila Csihar (o melhor vocalista que a banda já teve) que passara pelo Tormentor, trouxe teatralidade e diversidade às interpretações das letras do que viria ser o primeiro álbum de estúdio do Mayhem, o De Mysteriis Dom Sathanas.
Pegando o ouvinte pelos cabelos com sua rápida introdução, Funeral Fog é uma excelente faixa de abertura, um golpe quase letal em ouvidos ainda não acostumados com sonoridades mais extremas. A faixa acaba de forma seca e inesperada, dando lugar ao lúgubre dedilhado da climática e atmosférica Freezing Moon.
Nesta faixa tudo é perfeito e muito bem construído, cada sentimento que a canção pretende passar ao ouvinte tem seu momento certo para apresentar suas várias facetas. A letra é uma poesia funesta digna de poetas como Edgar Allan Poe e somadas ao vocal de Csihar só ganha ainda mais profundidade. Não é à toa que recentemente a música foi nomeada como a mais maligna de todos os tempos pela revista britânica Kerrang.
Na sequência, Cursed In Eternity traz um sentimento caótico em sua sonoridade com um vocal entoado de forma quase como se proferisse uma antiga profecia. Já o riff de Pagan Fears pega carona na ressonância da última nota da faixa, brindando o ouvinte com uma introdução de fazer o coco chacoalhar espontaneamente. A música traz vocais mais ardidos e uma verdadeira tempestade sonora com trêmulo pickings e blast beats mais do que bem executados.
Essa tempestade só dissolve-se com a cadência pós-introdução de Life Eternal, mais uma faixa que se enquadra no time das músicas que contém certa beleza, muito em parte, pela chorosa linha de baixo. Reza a lenda que a letra da canção estava ao lado do corpo sem vida de Dead com um bilhete de desculpas pela sujeira do sangue. A vida eterna pós a morte era algo muito almejado pelo eu lírico da canção, e qualquer semelhança com seu autor beira ao sarcasmo.
From The Dark Past e Buried By Time and Dust trazem riffs rápidos e violentíssimos e configuram entre as músicas mais velozes do trabalho.
E chegamos à derradeira faixa que dá título ao álbum, De Mysteriis Dom Sathanas. Não menos agressiva que suas predecessoras, a faixa apresenta vocais lamuriosos e até mesmo beirando ao operístico, elementos únicos que não retornariam tão cedo às composições do Mayhem.
E assim como no início, o álbum se encerra de forma abrupta, causando certa sensação de estranhamento ao ouvinte. Porém, este capítulo na história da banda reservava surpresas desagradáveis, enveredando-se por vias tortuosas e mórbidas.
Euronymous fora assassinado violentamente por Varg que lhe desferiu mais de 20 facadas na noite de 10 de agosto de 1993. Vikernes foi condenado à pena máxima de prisão da Noruega, levando Snore Ruch como cúmplice. Após o ocorrido, o vocalista Atilla Csihar resolve deixar o Mayhem.
O trabalho, além da música, traz consigo um caso singular na história do Heavy Metal mundial, uma vez que une assassino e vítima tocando juntos em um mesmo álbum.
Devido à tragédia, o lançamento de De Mysteriis Dom Sathanas sofreu adiamentos, chegando às lojas no dia 24 de maio de 1994. Os familiares do finado guitarrista pediram à Hellhammer, que todas as linhas de baixo presente no trabalho fossem regravadas e as menções e créditos ao assassino fossem retirados do disco. Para essa tarefa, o baterista recrutou novamente Necrobutcher à banda, mas as regravações nunca ocorreram. Os músicos se defendem, afirmando que o volume nas faixas de baixo foi abafado (algo parecido com o que foi feito no And Jutice for All do Metallica), mesmo que o som do instrumento seja bem perceptivo no decorrer do álbum.
Sem sombra de dúvidas, De Mysteriis Dom Sathanas é um trabalho primoroso e merece a influência que tem sobre toda a cena do Black Metal mundial. Nele se encontram elementos que ditaram toda a sonoridade que define o gênero até os dias de hoje. Foi com esse álbum que tive meu primeiro contato com o Mayhem, e considero Attila Csihar uma grande influência em meus vocais dentro da minha banda (Sacramentia).
Músicas como Pagan Fears e Freezing Moon se tornaram clássicos absolutos ganhando inúmeras versões por diferentes bandas, e raramente saem do repertório dos noruegueses.
Em 2016, o grupo entrou em uma turnê comemorativa aos 22 anos do lançamento do trabalho, que inclusive, passou por terras brasileiras.
Pois bem meus amigos, qualquer tentativa de tentar esmiuçar mais esta pérola do Black Metal soará como o famoso chover no molhado. Ouvir De Mysteriis Dom Sathanas é uma experiência única, seja para gostar ou odiar o som desta icônica banda. Mas esteja ciente, que você deve pular de cabeça e se entregar aos climas e atmosferas para compreender a profundidade de um dos trabalhos mais influentes no metal extremo.
Após passar por mais uma dissolução (e que dissolução), o Mayhem seguiu em frente, recrutando novos integrantes e tomando novas decisões estéticas para os próximos trabalhos. Mas essa é outra história…
TRACKLIST:
Funeral Fog
Freezing Moon
Cursed in Eternity
Pagan Fears
Life Eternal
From The Dark Past
Buried By Time and Dust
De Mysteriis Dom Sathanas