Em um determinado momento da adolescência deste que vos escreve, três bandas que viriam a ser consideradas naquele tempo, como minha santíssima trindade do Rock, foram me apresentadas por um amigo que conhecera há pouco tempo. Seu nome Renato Russo. Sim meus amigos, assim como muitos que podem entrar em contato com este texto, reconheço que por muito tempo tive uma forte resistência à obra da Legião Urbana. Mas bastou para que um parente de São Paulo (que até hoje ainda não descobri qual foi) me mandasse de presente os álbuns Música Para Acampamentos, Uma Outra Estação e o que disco que fez a minha cabeça, A Tempestade, que começara a me interessar pela discografia da banda, começando então uma escavação pelos lançamentos anteriores, dessa forma tentando recuperar um pouco do tempo perdido (Ba dum tsiii).

Pois bem, se pararmos para analisar a sonoridade da Legião, três bandas entre as inúmeras influências de Renato Russo e companhia, podem ser consideradas como matérias primas no que consiste o repertório do grupo, sendo ela The Cure, Joy Division e The Smiths. É possível encontrar elementos tanto líricos como sonoros de cada um deles entre as composições dos brasileiros. Seja nos teclados e sintetizadores, hora obscuros outrora açucarados como na obra de Robert Smith, no estilo vocal gélido como o de Ian Curtis e nas melodias e dedilhados das guitarras e letras da banda, cujo vocalista, é o alvo da resenha de hoje, Steven Patrick Morrissey, ou como é mais conhecido, Morrissey.Creio que consumi vorazmente a obra de cada uma das bandas citadas, mas por algum motivo que não sei ao certo, o The Smiths fora a última dessa trilogia. Todos os dramas, mazelas e dissabores que emanam dos trabalhos desta tríade, pareciam falar direta e profundamente com um adolescente na casa dos quinze anos…

E mesmo após conhecer todas as grandes obras dos Smiths, resumida a quatro discos irretocáveis, sendo eles The Smiths (1984), Meat is Murder (1985) , The Queen is Dead (1986) e Strangeways, Here We Come (1987), além Louder Than Bombs(1987), coletânea repleta de muitas canções não encontradas nos trabalhos de estúdio, ainda ávido por mais, adentrei então a extensa carreira de solo de Morrissey, que teve início em 1988, precisamente, seis meses após a dissolução completa do grupo.

Entretanto, após o excelente World Peace It’s None of Your Business (2014,) a demanda por novas descobertas e até certo nível de amadurecimento, naturalmente fizeram com que deixasse de acompanhar com afinco as novidades do bom e velho Moz. Ele ainda lançaria mais três trabalhos, mas apenas a regravação de Back on The Chain Gang, do Pretenders, lançada como um single, fora capaz de chamar minha atenção. Prometo a mim mesmo que buscarei ouvir com mais carinho Low In High School (2017) e I Am Not a Dog on a Chain (2020), obras estas, que não me pegaram de prontidão nos primeiros contatos, como quase tudo que ouvira durante todos estes anos.

Feita essa breve introdução, tenho de confessar que para o título deste texto, me utilizei do famoso recurso Click Bait, uma vez que Bonfire of Teenagers, nome dado ao então vindouro décimo quarto álbum de Morrissey, até a presente data, encontra-se completamente engavetado pela Capitol Records, a agora ex-gravadora do cantor.

Tudo teve início em março de 2020 quando I Am Not a Dog on a Chain fora lançado. Precisamente oito meses após a chegada do décimo terceiro disco de estúdio, a gravadora BMG dispensou Morrissey após a posse de novos executivos.

Dessa forma, o cantor passou a trabalhar em Bonfire of Teenagers entre 2020 e 2021. Em relação ao título do trabalho, Morrissey o baseara no lamentável atentado terrorista cometido pelo estado islâmico, durante uma apresentação da cantora Ariana Grande no Manchester Arena em maio de 2017, fato este que o artista considera como o 11 de setembro britânico.

O disco fora gravado em Los Angeles, California, tendo a produção de Andrew Watt. O registro ainda contaria com participações especiais, algo um tanto quanto inusitado na discografia do artista, trazendo a colaboração de Iggy Pop, o letrista parceiro de longa data Jesse Tobias, o baterista Chad Smith, o baixista Flea e o guitarrista ex-Red Hot Chilli Peppers, Josh Klinghoffer.

Mesmo contando com tantas presenças importantes, a mais inusitada delas seria a da cantora Miley Cyrus, que se revelou uma admiradora de longa data de Morrissey e os Smiths, se voluntariando para participar da faixa I’Am Veronica. De acordo com o cantor, cada minuto que ambos passaram juntos no estúdio fora amável e divertido.

Após ter finalizado o trabalho e utilizando-se do sarcasmo costumeiro de sua personalidade, o britânico anunciou pelas redes sociais que estava oferecendo o próximo trabalho de estúdio para aqueles que pagassem o maior ou o menor preço, como uma espécie de leilão às avessas.

Assim em 2022, a parceria entre o cantor e a gravadora americana Capitol Records (um dos braços da Universal Music) fora anunciada. Além da vindoura obra, a gravadora adquiriu os direitos para relançar todos os discos que Morrissey gravou entre 1995 a 2014. Após assinar toda a papelada, a data de lançamento do que viria a ser o décimo quarto álbum de Moz também fora acertada. O novo disco sairia oficialmente em fevereiro de 2023.

E creio que Morrissey deve estar arrependido dessa decisão até o presente momento. Mas, sigamos adiante…

Morrissey estreou grande parte do repertório de Bonfire of Teenagers ao vivo durante as turnês que realizou em 2022. Das onze faixas quem compõem o trabalho, sete foram executadas em apresentações distintas ,sendo elas I’Am Veronica, Rebels Without Applause, Kerouac’s Crack, I Live in Oblivion, Bonfire of Teenagers, Sure Enough, The Telephone Rings e Saint In a Stained Glass Window. Graças aos fãs que filmaram estas performances, que hoje podemos ter um pequeno vislumbre de como soaria este trabalho. Inclusive, deixarei ao final do texto o vídeo de um compilado destas canções.

Com tantos ventos de bonança, Morrissey não cessava em declarar aos quatro cantos, que Bonfire of Teenagers fora o melhor disco que já produzira em toda vida. Mas as adversidades começaram a acometê-lo com o lançamento oficial do primeiro single, Rebels Without Applause, em 29 de outubro de 2022 música pra lá de cativante que remete e muito a sonoridade dos tempos de The Smiths.

Entretanto a Capitol Records praticamente ignorou o lançamento, tendo dado nula atenção ao single, situação esta que o cantor considerou bastante triste e notável.

Dessa forma, em novembro, Morrissey anunciava a separação voluntária com a gravadora. Pouco tempo depois, ele informou que Miley Cyrus desejou que os vocais que realizara em I’Am Veronica fossem removidos do disco. Rumores haviam surgido de que a cantora havia tomado essa decisão pelas opiniões políticas e declarações ácidas do cantor. Entretanto, Morrissey se recusou a acreditar nessa possibilidade, afirmando em entrevistas que ela sofrera pressões de forças superiores. Ele ainda negou as associações que a mídia fizeram entre ele e a extrema direita, colocando a culpa no que chamou de “abutres do cancelamento” ligados à grande imprensa que espalham informações erradas sobre ele.

Em fevereiro de 2023, o britânico voltou a comentar sobre o destino do disco, afirmando que enquanto o grupo Universal (que comanda a Capitol) detiver os direitos de Bonfire of Teenagers, o disco não será lançado. Ele ainda afirmou que a gravadora estava mais interessada em promover o satanismo de Sam Smith, referindo-se a polêmica causada pelo cantor após a performance recente de Unholy, durante o Brit Awards.

E fora dessa forma que um disco promissor e já concluído fora parar no limbo graças a tal cultura do cancelamento…

Meus amigos, ao me deparar com toda essa história e os motivos (ou mesmo a falta deles) que levaram a este trabalho a poder nunca mais ver a luz do dia, fizeram com que minha mente entrasse em um aceleradíssimo processo de divagações madrugada a fora neste fim de semana.

Espantar-se pelas declarações ácidas e polêmicas de Morrissey é o mesmo que se espantar com os discursos políticos contidos nas obras do Pink Floyd, especificamente, nas letras de autoria de Roger Waters. Tanto as declarações, quanto as mensagens políticas, sempre estiveram ali, sendo elementos que não só ajudaram a consolidar a carreira de ambos, como também contribuíram para construir os arquétipos e estereótipos, que hoje, constituem as lendas e mitos por trás das meras figuras mortais que são. Só não viu quem não quis, ou quem fingiu não ver.

Um bom exemplo disso pode ser atestado na clássica Bigmouth Strikes Again, onde o frontman do The Smiths tenta se retratar (da forma mais cínica e petulante) perante uma declaração que teria feito a respeito do desejo em ver a tirânica ministra Margaret Thatcher sendo encontrada morta estirada em uma poça de sangue na própria cama. E isso é apenas a ponta de um enorme iceberg da coleção de polêmicas que rodeiam o artista.

Em relação à pecha de racista, tudo se deu quando levantaram uma frase dita pelo cantor em 2010 onde o mesmo chamava os chineses de subespécie, isso levando em conta o histórico de maus tratos aos animais no país. Vale lembrar que o Moz é um convicto vegetariano desde os tempos áureos de Smiths, se não antes. E sinceramente meus amigos, já vi coisas muito piores sendo ditas por grande parcela das pessoas ao defender suas causas ou ideologias, contra os próprios algozes internet adentro, (tanto anônimos, quanto celebridades) independentemente de espectros políticos.

Morrissey também causou certo reboliço, ao declarar em entrevistas recentes que a palavra diversidade é uma nova forma de conformismo, uma vez que, utilizam-se dos princípios dela, não para exaltar a beleza de nossas diferenças culturais e étnicas, mas sim para padronizar a sociedade como um todo em um única linha absoluta e inquestionável de pensamento. Claro que a “imprensa especializada” apenas pegou o que achou conveniente para si e o resto você já deve ter imaginado…

Cancelar Morrissey por ser polêmico, é o mesmo que parar de tomar água pelo fato de ela ser liquida.

Ao que tudo indica, o tal cancelamento não vem surtindo efeito, uma vez que o cantor atualmente se encontra em turnê celebrando 40 anos de carreira, com direito a duas datas dedicadas ao Brasil em setembro. Além disso, o artista já anunciou a chegada de um novo trabalho para o final do ano, intitulado Without Music The World Dies. O agora sim décimo quarto disco de inéditas de Morrissey, foi gravado no estúdio La Fabrique Studios em Saint-Remy, na França e contará com dez faixas inéditas. Produzido por Joe Chicarelli, este fora o primeiro registro gravado sem os limites de um contrato. Atualmente, ele oferece o álbum a qualquer gravadora ou investidor privado que esteja disposto a distribuir o disco finalizado.
Caro amigo leitor, você tem todo o direito de discordar das posições políticas ou das falas (ou mesmo textos) de uma pessoa, a ponto de cortar laços e deixar de consumir a obra, como no caso de um artista.

Mas, a partir do momento em que você começa a apontar dedos e iniciar uma verdadeira caça às bruxas para destruir alguém, cujo ponto de concordância diverge do seu, eis que a situação começa a ficar perigosa e por muitas vezes tóxica.

Atos estes que vem sendo a tônica da chamada cultura do cancelamento.

Vale ressaltar, que não sou de todo contra o cancelamento, mas desde que a pessoa que esteja de fato sendo exposta, tenha comprovadamente e legalmente atacado uma crença, uma minoria ou mesmo cometido um crime.

O problema do cancelamento e das pessoas que o entorna, é não se retratar quando comprovado que toda a situação que gerou o cancelamento fora tirada de contexto, ou que o individuo prova inocência. Há um silêncio absoluto nesses casos ou uma simples e quase invisível nota de rodapé que pode se travestir em um post tímido nas redes sociais. Como o recente caso envolvendo uma das pessoas que mais apoia o underground brasileiro, o Tulula da lendária loja e selo Mutilation, acusado por um site que se diz formado por jornalistas, sem a menor averiguação dos fatos, de simpatizar com ideologias nazistas.

Por trás de toda glória e feitos incríveis, um ídolo no fundo é apenas um individuo, que possuí falhas, virtudes desejos e valore que nem sempre irão de encontro com tudo àquilo que você acredita ou defende. E se você precisa endeusar alguém para se afirmar ou sentir-se pertencente a uma causa ou movimento, creio que talvez você não esteja “lutando” pelos motivos corretos. Lembre-se sempre que a divergência de ideias é um dos pilares centrais da democracia, palavra esta, tão utilizada como arma política nos dias de hoje. Ser democrático não é simplesmente aceitar aquilo que melhor lhe convém.

Em suma, deixo ao final deste texto uma cantada de pedra. Tenho a plena convicção de que a Capitol Records lançará sim Bonfire of Teenagers, porém, apenas para lucrar em cima do nome de Morrissey, poucos dias após em que este já não estiver mais entre nós. E a mesma imprensa que hoje o ataca veementemente, se beneficiará dos likes e acessos garantidos com as matérias publicadas sobre a vida e obra do cantor, algo não muito diferente do que recentemente ocorreu com Sinnéad O’Connor

Tracklist
1-I’Am Veronica
2-Rebels Without Applause
3-Kerouac’s Crack
4-Ha Ha Harlem
5-I Live in Oblivion
6-Bonfire of Teenagers
7-My Funeral
8-Diana Dors
9-I Ex-Love You
10-Sure Enough, The Telephone Rings
11-Saint In a Stained Glass Window

 

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.