Lembro-me como se fosse ontem, quando corri ansiosamente para uma das duas únicas lojas de CDs da minha cidade, (atualmente temos apenas uma que mal abre), para pegar a encomenda que acabara de chegar. Na época, eu trabalhava como vendedor numa dessas lojas de departamento estilo Casas Bahia, Magazine Luiza, etc.

As TVs da frente da loja em nada ajudavam a minha ansiedade quando passavam o rápido comercial de Nheengatu, o décimo quarto álbuns dos Titãs (em um tempo quando a Som Livre tinha espaço dentro dos horários comerciais da Globo).

A sensação que tive ao desembrulhar o plástico daquele digipack foi pra lá de gratificante, pois me senti como em tempos passados, quando as pessoas tinham que aguardar os discos chegarem às lojas e correr para garantir uma cópia. Coisa tola pra aqueles que já se deixaram levar pelo imediatismo da internet, mas é uma memória que sempre se encontrará nítida na minha cabeça.

Momentos nostálgicos à parte, hoje trago um dos melhores trabalhos de uma das bandas que mais gosto dentro do chamado “Rock Nacional”.

Nheengatu marcou o retorno dos Titãs  a uma levada mais pesada que não era vista desde 1993 com Titanomaquia, trabalho que revisitei em uma das primeiras colaborações para O Subsolo. Após isso, a banda paulista que nascera como um octeto perambulou por caminhos bem mais comerciais, como os bem sucedidos dois volumes do acústico MTV e trabalhos com um rock mais brando e pop como nos primórdios do grupo.

Na época de produção do trabalho, os Titãs estavam reduzidos a quatro integrantes, fase essa, que considero a mais prolífera em quesito entrosamento de banda, desde o falecimento do guitarrista Marcelo Fromer, as saídas de Nando Reis 2002 e do emblemático baterista Charles Gavin em 2009. Neste período, os remanescentes Paulo Miklos, Branco Mello, Sergio Britto e Tony Belloto, tocavam sem o apoio de músicos contratados, com excessão de Mário Fabre, nome levantado por Gavin para dar continuidade nas batucadas titânicas. Miklos ficou com a guitarra base e Branco se revezava com Britto no contrabaixo.

E para emanar todo o sentimento de revolta e entrar de vez neste retorno sonoro, os Titãs passaram por um divertidíssimo show com a banda portuguesa Xutos & Pontapés no Rock In Rio de 2011, e uma turnê comemorativa aos 30 anos do trabalho mais icônico da trajetória  do grupo, o Cabeça Dinossauro (1986).

De origem Tupi Guarani, o título do disco significa “Língua Geral”. Nheengatu foi uma espécie de apanhando do dialeto indígena utilizado pelos jesuítas em meados do século XVII, para que a comunicação entre eles e os índios fosse mais eficaz. Já a capa, traz a icônica pintura De “Kleine” Toren Van Babel do Pintor Renascentista Pieter Bruegel (também utilizada em Converging Conspiracies (1993) dos suecos do Comecon).

Ambas as referências trazem em comum o caos causado pela falta de um consenso geral dentro das comunicações na sociedade. E como em 2014, o país passava por um turbulento período político, (cujos efeitos respingam até hoje em nosso cotidiano pela segregação e cega veneração) os Titãs tinham o conceito e temáticas perfeitas para calcar o repertório do novo disco.

Fardado se trata de uma irmã gêmea de Polícia e aborda a truculência abordada por aqueles que deveriam servir e proteger, mas que em muitos casos, servem como meros peões do Estado contra a população. A faixa contém riffs simples, porém cativantes, uma marca quase registrada no DNA do grupo.  Destaque também para o videoclipe, que apresenta uma nova faceta mascarada do quinteto paulista.

De introdução quase sombria, Mensageiro da Desgraça extrai belas melodias dos vocais de Paulo Miklos, que entoa o cotidiano, mazelas e lutas de um morador de rua perdido pelas ruas de São Paulo. A letra teve como uma das inspirações o lamentável caso do Índio Galdino, queimado vivo por cinco indivíduos da alta classe de Brasília em 1997. Todos os acusados e condenados pela barbárie contra o indígena hoje ocupam cargos importantes dentro de departamentos do governo. Vale a pena ressaltar, a analogia que a banda faz mesclando os certos pontos turísticos de São Paulo com a selva de pedra de Homem Primata.

O Ska-Punk de República dos Bananas apresenta uma faixa divertida entoada por Branco Mello, que teve como parceiros de composição o cartunista Angeli, o diretor e ator Hugo Possolo e o guitarrista Emerson Villani, músico que por certo tempo foi membro da banda de apoio dos Titãs. A letra cita vários personagens que com certeza estão presentes no nosso cotidiano, com suas manias, defeitos e condutas duvidosas. Os tais “cidadãos de bem”, os defensores da moral e dos bons costumes, que na maioria das vezes são tão providos de imoralidade quanto os algozes que julgam combater, podem ser enquadrados perfeitamente como os tais bananas da canção.

Fala Renata traz uma personagem fictícia, inspirada pelas músicas antigas da MPB, que sempre eram batizadas com nomes de mulheres citadas nas letras. Essa tagarela é uma analogia àqueles que muito falam, que cuidam da vida alheia, falam abobrinhas sem pensar ou sem ter um conhecimento pleno sobre determinado assunto. Um ótimo retrato que podemos trazer para o nosso 2022 com os especialistas de toda e qualquer pauta nas redes sociais. O Riff dessa faixa é potente, marretando a cabeça do ouvinte.

O icônico Arnaldo Antunes, que deixou o grupo no começo dos anos 90 para se dedicar a outros projetos, sempre se fez presente contribuindo com os Titãs. E mais uma colaboração veio com Cadáver Sobre Cadáver, composta em parceria com Miklos. A letra trata sobre a única certeza que o ser humano tem desde o dia em que nasce. Uma certeza que não distingue cor, credo ou classe social, a morte.

Canalha trate-se de uma nova roupagem ao clássico do grande Walter Franco, que infelizmente nos deixou em 2019. Para essa regravação uma única exigência fora feita da parte de Franco: que as linhas de guitarras fossem às mais pesadas possíveis. Eu me lembro que conheci o trabalho de Walter através desta faixa.

Ah Pedofilia, uma faixa com riff simples e visceral que em conjunto com a letra perturbadora, remete o ouvinte aos tempos do poderoso Titanomaquia e até mesmo, ao projeto paralelo de Branco e Brito nos anos 90, o Kleiderman. Qualquer explicação mais alongada sobre essa música vai destruir a sua experiência, dê o play e confira por si próprio o que afirmo.

Chegada Ao Brasil (Terra À Vista), é uma versão às avessas do descobrimento, tirando todo o heroísmo e altruísmo que sempre vemos nos livros de História. Essa música saiu da parceria entre Branco Mello e o diretor de teatro Aderbal Freire, a partir de um trabalho em conjunto em uma peça chamada Jacinta, onde o tema era abordado em determinado momento do espetáculo. Faixa divertidíssima do começo ao fim!

Eu Me Sinto Bem, traz o ska com pitadas de frevo, em uma letra que divaga sobre o contentamento com o marasmo do cotidiano. Talvez essa seja a música mais fora da curva dentro do conceito de Nheengatu, mas em hipótese alguma é uma faixa ruim.

As relações abusivas e a violência doméstica são retratadas em Flores Pra Ela, que, diga-se de passagem, é outro ponto altíssimo no trabalho, somando a sonoridade e letra em prol de uma experiência visceral. É como se fossemos transportados para vivenciar por nós mesmo todos os absurdos descritos na música, graças a teatral performance de Paulo Miklos.

Não Pode, traz uma sátira das ordens e regras que Sergio Brito estabelece enquanto no papel de pai dentro de casa. É muito interessante ter o cantor de Polícia, divagando sobre a tolice desse mero exercício de poder.

O fanatismo, assim como a exploração religiosa são retratados em forma de uma reza inversa entoada por Branco Mello em Senhor.

Fechando o disco de forma magistral temos a divertida Baião de Dois, que traz referências à Cartola, Pixinguinha e outros gigantes da MPB, transformando a música em uma espécie de Frankstein titânico. Quem São os Animais? clama pelo respeito mútuo, e a liberdade sobre a diversidade na sociedade, uma mensagem importantíssima, por trás de uma faixa de sonoridade mais alegre.

Em suma meus amigos, eu não diria que Nheengatu foi o último grande disco dos Titãs, mas sem dúvidas para mim, ele entra na lista de trabalhos ímpares dos paulistas.

Somado com Cabeça Dinossauro, o décimo quarto álbum dos Titãs, traz o retrato fidedigno das mazelas, maus costumes e desvios de conduta/caráter, de uma sociedade brasileira que pouco evoluiu desde o lançamento do terceiro disco em 1986. É um trabalho que carrega uma produção impecável, músicas simples e cativantes, que misturam o Rock pesado característico da banda, misturados a elementos brasileiros. As 14 faixas de Nheengatu passam voando pelo ouvinte, tornando a repetição um exercício pra lá de prazeroso.

Infelizmente este seria o último disco a contar com toda a energia de Paulo Miklos, o que resultou em uma falta significativa, principalmente, para os trabalhos que viriam nos anos seguintes. O cantor anunciou a saída do grupo após a turnê do disco, que rendeu o excelente registro Nheengatu Ao Vivo.

Com mais uma baixa na banda, Britto, Branco e Tony passariam por mais um período de provação para os Titãs, lançando em 2018 a ópera rock Doze Flores Amarelas, um trabalho audacioso que marcou a estreia de Belloto nos vocais (na faixa Canção da Vingança), mas que talvez a presença, e todo o poderio teatral de Miklos, ajudariam a obra a se consolidar ainda mais.

Devido aos altos custos que a produção da ópera exigia, o trio resolveu voltar para o formato intimista, lançando o álbum Trio Acústico (2020), trabalho de releituras que particularmente, me soou desnecessário, uma vez que, já existem dois álbuns ao vivo nessa mesma pegada, porém, com arranjos mais interessantes. Mas talvez tenha sido uma boa forma de se manterem afiados durante a pandemia.

Atualmente o trio está em estúdio gravando um novo trabalho (até o momento sem título ou data de lançamento definidos), que segundo o trio remanescente, será puxado para o rock dos primórdios dos Titãs, o que para quem acompanha o grupo assim como eu, é uma boa notícia. Por outro lado, a produção ficará a cargo de Rick Bonadio, o mesmo produtor do mediano Sacos Plásticos (2009), álbum cujo apelo pop e as tentativas de baladas para emplacar nas trilhas sonoras de novelas era bem acentuado.

Agora é uma questão de tempo para sabermos o que vem por aí em mais um capítulo dessa trajetória de 40 anos, de um dos monstros sagrados do Rock brasileiro…

Tracklist:
 1-Fardado
2-Mensageiro da Desgraça
3- República dos Bananas
4- Fala, Renata
5- Cadáver Sobre Cadáver
6- Canalha
7-Pedofilia
8- Chegada ao Brasil (Terra à Vista)
9- Eu Me Sinto Bem
10-Flores Pra Ela
11-Não Pode
12-Baião de Dois
13- Quem São Os Animais?

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.