Falar de Cazuza é nostálgico e carrega um mágico sentimento a este que vos escreve, me levando novamente para uma época, onde as coisas eram mais simples, sim, porém haviam pessoas muito mais queridas no meio de nós. Pelo menos comigo fora assim.

A obra do Exagerado, foi o meu primeiro contato com o Rock Nacional, e o jeito despojado e meio “amalandrado” do cantor marcou e muito a minha pré-adolescência. E quem diria que meu primeiro CD da vida, seria a icônica coletânea Novo Millenium, dada de presente de dia das crianças pelo meu falecido pai. Me lembro dele me perguntando, se eu gostaria de ganhar um aquário ou o CD do Cazuza. E se você chegou até este parágrafo, já sabe qual fora a minha escolha né?

Guardo até hoje este presente com todo o carinho do mundo, apesar da mídia já estar bem gasta e pulando as faixas.

O Tempo Não Para é um icônico álbum ao vivo lançado originalmente em 1988. O repertório que permeia o disco fez parte da turnê de divulgação do disco Ideologia (1987), em apresentações realizadas nos dias 14, 15 e 16 de outubro de 1988 no lendário Canecão, famosa casa de shows na cidade do Rio de Janeiro, cujas atividades, foram suspensas no ano de 2010, após uma batalha jurídica que durou 40 anos.

A turnê de Ideologia seria a última da carreira do cantor, que em decorrência dos problemas de saúde acarretados pelo vírus HIV, se afastaria definitivamente dos palcos, sendo o último show realizado no dia 24 de janeiro de 1989. Pouco tempo antes da morte em 1990, Cazuza lançaria o disco duplo Burguesia, e as sobras deste trabalho se tornariam o álbum póstumo Por Aí (1991).

Infelizmente, devido às limitações dos discos de vinil, O Tempo Não Para fora lançado de forma mutilada, tendo sete músicas cortadas. Mesmo com a chegada da tecnologia dos CDs, o disco ainda permanecia com o corte inicial da tiragem em LP. E após anos vivendo de bootlegs, eis que em 04 de abril 2022, data em que Cazuza completaria 64 anos, que nós os fãs, fomos agraciados pelo lançamento de O Tempo Não Para – O Show Completo.

Mais do que uma celebração, o relançamento deste trabalho, faz parte da iniciativa Reviva Cazuza realizada por Lucinha Araújo, mãe do cantor e detentora do espólio musical do artista. Essa campanha visa estimular ações em torno da obra e imagem de Cazuza.

Além das sete faixas anteriormente cortadas, o repertório do disco é executado igualmente de acordo com o setlist original, trazendo ainda, alguns diálogos do cantor em momentos distintos no decorrer da apresentação, o que proporciona uma proximidade ainda maior.

A respeito dessa nova versão, posso lhes dizer meus amigos que se tivéssemos à disposição as imagens, em conjunto com o áudio, a experiência com este trabalho seria ainda mais única e inesquecível. Tudo passou por um carinhoso tratamento de som, o que faz o show soar como se tivesse sido gravado ainda ontem.

A nova mixagem além de proporcionar vigor a voz de Cazuza, consegue extrair com maestria toda a qualidade técnica da banda de apoio que acompanhava o cantor nesta apresentação, que contava com Luciano Maurício, Ricardo Palmeira (guitarras), Nilo Romero (baixo), Christiaan Oyens (bateria), João Rebouças (teclados), Wildor Santiago (saxone) e Jussara Lourenço e Jurema Lourenço (vocais de apoio).

Outro ponto a favor da necessidade de se ter a íntegra dessa apresentação em vídeo, é a possibilidade de poder conferir o trabalho de iluminação realizado pelo grande Ney Matogrosso, que além das luzes de palco, foi o responsável pelo modelito usado por Cazuza e a direção do espetáculo como um todo.

As “novas” faixas presentes no álbum são fundamentais até mesmo para que possamos entender o próprio conceito desse show, que diferente de apresentações de divulgação de um determinado disco vigente de um artista, em O Tempo Não Para as músicas de Ideologia ainda que presentes, fazem apenas parte de um todo que passeia por toda a trajetória de Cazuza.

A audição se inicia com Vida Louca Vida, clássico absoluto de Lobão (outra figura que quero trazer muito em breve para meus textos) que ficara eternizado pela voz de Cazuza.

Aos poucos o andamento vai ganhando mais peso e energia, mostrando a faceta mais roqueira do cantor carioca em clássicos como Boas Novas e Ideologia. Essa atmosfera vai novamente se mutando, indo para um lado mais pop com O Nosso Amor A Gente Inventa (Estória Romântica) e uma das minhas faixas favoritas do disco Só Se For A Dois (1987), Completamente Blue.

As próximas três faixas seguintes Vida Fácil, A Orelha de Eurídice e Blues da Piedade dão uma pitada Jazz Rock e Blues ao espetáculo, que vai desacelerando e moldando o público para o momento das baladas inesquecíveis de Cazuza, Codinome Beija Flor e Preciso Dizer Que Te Amo.

O último ato chega. Cazuza e banda vão novamente animando a platéia com mais um Blues Rock em Só As Mães São Felizes, uma homenagem do poeta para os tantos outros que o influenciaram. Mais uma parceria com Lobão se inicia com a melancólica Mal Nenhum. Em seguida temos as catárticas Brasil e Exagerado, o que ao meu ver, em quesito letra, são belos “morde e assopra”, que demonstram essa veia crítica e apaixonada do cantor.

O Tempo Não Para traz uma aura épica e grandiosa. E não tem como meus amigos, essa faixa desperta em mim muito sentimentos distintos, pois carrega momentos variados, que transitam em passagens, que exprimem sentimentos diversos, como beleza, tristeza, indignação, a impotência perante a morte, o sentimento de remar contramaré, entre muitas outras. Coloque seus fones de ouvido e preste atenção em cada nuance dessa faixa, e você vai entender o que estou dizendo. Não preciso nem dizer o quanto o solo dessa canção, o mais lindo e técnico da música brasileira, é capaz de proporcionar arrepios astronômicos.

Ao final, a calmaria de Faz Parte do Meu Show traz a essência do que realmente a obra de Cazuza é, um clipe sem nexo, um terror retrocesso em meio a Bossa Nova e ao Rock N Roll.

Meus amigos, ao final de tudo, mesmo com o excelente trabalho de restauração sonora pela qual o disco passou, há um fator que deve ficar muito, mas muito evidente em O Tempo Não Para – O Show Completo. Aqui, temos a performance de uma pessoa incrível que mesmo doente como estava, encarava a situação toda de peito aberto, cantando como se realmente o amanhã pudesse nunca chegar,  situação  essa, que não era de todo uma mentira.

Aos mais jovens que ainda não tiveram a oportunidade de ver algo mais visual desse show (olha outro ponto a favor ai), saibam que em certos momentos da apresentação, durante as passagens entre uma música e outra, Cazuza precisava ir até o canto do palco para tomar doses homeopáticas de oxigênio dispostos em cilindros, para assim, continuar a apresentação.

Em um mundo onde artistas de bundas sacolejantes são quase que forçados por nossas goelas abaixo pela mídia, para serem aceitos como orgulho nacional, saber que tivemos um artista que enfrentou e se expôs a tudo que Cazuza passou, com dignidade, coragem e qualidade, faz tudo o que vejo nos dias de hoje no meio artístico, carregar uma aura e um desejo de ser desprezível e descartável…

Em relação a edição física há severas ressalvas a se levar consideração.

Acho importantíssima a preservação da memória de Cazuza, pois as novas gerações precisam conhecer a magnitude, tanto da obra, quanto da coragem e dignidade com que Agenor lutou contra um inimigo na época impiedoso e implacável.

Entretanto, acho um erro grotesco e absurdo por parte da Universal Music, atrelar este registro a um kit, que convenhamos, é mequetrefe, contendo itens que sequer são de utilidade ou agregam valor sentimental para quem aguardava por tanto tempo este momento. Ora meus amigos, você pagaria, em tempos dificílimos como estes, a bagatela de R$130.00 por uma caixinha de papelão, que fora o CD, oferece um “quadro” (a própria caixa virada ao contrario pendurada a um prego) uma caixa organizadora (pasmem) e uma caderneta que ao máximo deve possuir 20 páginas?

E depois esses mesmos engravatados se perguntam, porquê os itens não vendem, ah faça me o favor! Inclusive, já passou da hora de nós como consumidores, sermos mais exigentes perante os produtos que nos são ofertados (e não digo isso apenas no âmbito cultural).

Bom, ao menos temos o streaming para poder confortar os nossos corações (essa frase nunca me fora tão esquisita, uma vez que amo o formato físico, mas é a única solução para quem quer de fato ter contato com o álbum). Poxa, será que é tão difícil assim esses grandes grupos correrem atrás dos inúmeros arquivos da Globo, por exemplo, e remasterizarem esse show ou o máximo de conteúdo a respeito do mesmo? Um bom exemplo de que isso pode dar certo, é o excelente, porém, ainda insuficiente Para Sempre Cazuza, único DVD oficial do cantor lançado pela própria Universal em 2008.

O Youtube mesmo possuí diversos especiais da época com qualidade inferior que poderiam facilmente ser localizados, até mesmo porque, estamos falando de um artista grande, como Cazuza.

Aliás este é um mal que a cultura brasileira sempre padeceu, a falta da preservação da nossa própria história, isso indo muito além do ramo musical. Imaginem quantas fitas já apodreceram dentro de galpões, que poderiam ser remasterizadas e de repente alocadas em algum serviço de streaming?

Eu adoraria logar em uma Netflix da vida e ter uma área destinada a shows históricos, tanto internacionais como os nossos nacionais. Espero que este mesmo pensamento um dia paire pela mente do pessoal responsável que ajuda nessa curadoria da memória de Cazuza e de tantos outros grandes artistas, que um dia, vagavam neste nosso tão amado país de terceiro mundo.

Por hora meus amigos, apreciem essa pequena pérola que o tempo, aquele que nunca para, resolveu nos presentear. E Viva Cazuza!

Tracklist

1- Vida Louca Vida
2- Boas Novas
3-Ideologia
4- O Nosso Amor A Gente Inventa (Estória Romântica)
5- Completamente Blue
6- Vida Fácil 
7-A Orelha de Eurídice
8- Blues da Piedade
9- Todo O Amor Que Houver Nesta Vida 
10- Codinome Beija Flor
11- Preciso Dizer Que Te Amo
12- Só As Mães Sãos Os Felizes
13- Mal Nenhum
14- Brasil
15- Exagerado
16- O Tempo Não Para
17 – Faz Parte Do Meu Show

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.