“As barbaridades e a iníquas crueldades perpetradas pelas assim chamadas raças cristãs, em todas as regiões do mundo e em todos os povos que conseguiram subjugar, não encontram paralelo em nenhuma era da história universal e em nenhuma raça, por mais selvagem e inculta, por mais desapiedada e inescrupulosa que fosse”. É com esse trecho extraído de O Capital, obra icônica do filósofo alemão Karl Marx, que apresento o Black Metal Anti-colonialismo do Hereticae.

A banda teve início em Londrina, Paraná, no ano de 2015, quando o guitarrista e vocalista Dalton Santana, em parceria com o baixista e amigo de longa data Cristiano Obuti, decidiram saciar um desejo que há anos esperava para enfim ser saciado. O de criar uma banda.

Apesar de crescerem ouvindo bandas clássicas como Megadeth, os membros do Hereticae tem como influências, medalhões do Black Metal, entre eles o Mayhem, Gorgoroth e Behemoth. Mas um dos elementos que chama atenção na banda, é a postura anti-colonial. A temática das letras aborda um questionamento aos discursos históricos hegemônicos, onde o Homem Branco e temente a Deus, em 99% dos casos, é colocado no pedestal de figura heroica ou altruísta. E trazendo ainda mais clareza para tais questionamentos, todas as faixas do trabalho que dissecarei a seguir são entoadas em nossa língua materna.

Após essa introdução à banda, recomendo que se isole em um local calmo com um bom par de fones, e junto ao encarte do CD (ou das letras disponíveis nas plataformas de streaming) atente-se aos antigos e dissonantes Ecos do Atlântico…

Pode ser que eu esteja enganado, mas talvez pelo título do disco, a arte da capa e a primeira rápida passada de olhos no conteúdo das letras, tive a sensação de que o trabalho busca focar em um período especifico, sendo este, o período do descobrimento.

Essa minha interpretação pode ser reforçada pela faixa de abertura 1492, que por entre o barulho de ondas e ventania, apresenta uma verdadeira climatização desoladora, e ao mesmo tempo tribal, que mesmo de forma mais contida, tem uma carga de dramaticidade e epicidade, preparando muito bem o ouvinte para o que está por vir.

Ondas Negras apresenta um tremolo picking melancólico que se mescla com a brutalidade que entra logo em seguida. Em companhia da letra, que de forma poética, retrata o caos como a base da existência, é possível ainda presenciar certo grau (doentio talvez) de beleza em meio a este clima arrebatador das ondas.

Sem tempo para respirar, Antipátria se inicia. A mensagem aqui é clara e pra lá de atual: o que regeu, e ainda rege todas as atrocidades cometidas em nome de um Deus, é o medo. Essa é uma faixa de diversas camadas, mostrando ainda mais as habilidades dos instrumentistas. Destaque para o belíssimo solo aos quatro minutos e vinte de música.

O Hereticae acrescenta pitadas de Doom Metal à sonoridade do álbum em A Ferro e Fogo  ,faixa de pegada cativante que funciona como um verdadeiro hino de resistência aos chamados “Homens Santos” e toda a imundice que os cerceiam.

Na sequência, A Cruz e a Águia apresenta uma atmosfera furiosa, retratando toda a ira dos povos indígenas contra os algozes que há anos os exterminam e os escravizam. Essa é uma daquelas típicas músicas que fazem com que o pescoço involuntariamente comece a balançar, mesclando com excelência o fator peso com passagens mais melódicas. Ao final, ainda nos deparamos com uma marcante frase, que para aqueles que se atentarem às letras, ficarão imersos por certo tempo em um lapso de contemplativo e reflexivo.

Os dedilhados soturnos, cativantes e quase hipnóticos de Não Servirá! deixam o ouvinte em um estado de transe iminente, interrompido bruscamente pelo peso que rapidamente o traz para a faixa em questão. A pegada que essa música carrega, remete e muito às bandas norueguesas dos anos 90, que em parte, permeiam o panteão de influências do Hereticae. A letra aqui, traz uma espécie de narrativa, mas que ao mesmo tempo, pode funcionar como um tipo de juramento, e por que não, uma oração às avessas contra a servidão cristã.

Estrelas e Constelações é uma faixa de curta duração, mas que apresenta um instrumental incrível que deságua em um verdadeiro redemoinho de dramaticidade e interpretação visceral. Com apenas duas linhas de texto, a música consegue impactar e deixar vívido aquele desejo de revisitá-la mais vezes.

Em seguida temos Tupamara, a faixa mais longa do trabalho. Além da brutalidade que já vem sendo desencadeada no decorrer da audição, a letra traz um verdadeiro retrato do que foi o derramamento de sangue durante o período de colonização da América Latina.

Já a melódica e calma linha de contrabaixo, em conjunto com o suave barulho das ondas, faz a introdução da belíssima Ecos do Atlântico. A faixa título é arrastada, deixando parte do ódio das composições anteriores para abraçar o sentimento de desilusão apresentado de foma homeopática no ínicio do álbum. E meus amigos, que escolha acertada da banda ao selecionar essa música para fechar o disco! Essa mistura de beleza, melancolia e desespero, da ao trabalho a sensação de encerramento de um ciclo, que mesmo banhado por sangue e injutiça, escoará perpetuamente na memória daqueles que deixarem se levar pelas águas deste oceano dominado pelo Hereticae…

Ecos do Atlântico foi mais um disco recebido da parceria com a Extreme Sound Records. Este é um daqueles típicos trabalhos cuja qualidade já pode começar a ser medida pelas quebras de padrões. A experiência se torna ímpar logo nos primeiros contatos, e não falo a partir do momento que damos o “play”. A capa do disco, pintada em aquarela por Danilo Augusto, traz um ineditismo à estética do Black Metal, apresentando uma belíssima paisagem, que representa talvez, a visão de um marinheiro do tempo do descobrimento, ao se aproximar da terra que acreditava ser as Índias.

É um disco que apesar de ter sim excelentes composições que podem tranquilamente serem conferidas à parte, funciona de forma muito mais suculenta quando executado na íntegra, dando ao ouvinte uma maior contextualização sobre a proposta e os temas trabalhados de forma tão singular pela banda, se considerarmos o modus operandi da maioria de outros grupos que buscam extrair e protestar em cima de tônicas semelhantes (beirando a repetição exaustiva e ao mais do mesmo). A escolha pelo uso da língua portuguesa também é um fator que merece destaque, pois creio que a alta carga poética, e por horas filosóficas, contida nas letras do Hereticae, seria altamente prejudicada caso fosse transcrita para qualquer outro idioma. Funciona quase como assistir a um filme de horror brasileiro, que pelo menos na visão deste que vos escreve, se torna ainda mais perturbador pelo simples fato de se situar em nossa realidade tupiniquim.

A produção do disco, feita ao longo do segundo semestre de 2019 no Urutau Estúdio por Cleverson W. França , Cristiano Obuti e Dalton Santana é sólida (o que para os mais puristas do estilo pode ser um demérito)  sabendo aproveitar e extrair com perfeição o som que emana do quarteto sem perder a agressividade e atmosfera inerente do Black Metal. Para dar vida a versão física do trabalho, 15 selos do nosso underground apostaram no trabalho da banda.

Em suma, Ecos do Atlântico é um disco que merece a atenção do público que ama clamar que nosso cenário está morto. A obra que tive o prazer de conhecer e dissecar apresenta uma banda que dispara de forma inteligente, poética, épica e com ineditismo ímpar contra os alvos de discordância e desafeto. Atualmente, o grupo vem trabalhando em um sucessor para este primeiro petardo, o que faz com que a cobiça por saber o que está por vir, comece a mexer com minha ansiedade. Por enquanto, adentremos ao mar algumas vezes mais…

Tracklist:

1-1492
2-Ondas Negras
3- Antipátria
4-A Ferro e Fogo
5- A Cruz e a Águia
6-Não Servirá!
7-Estrelas e Constelações
8-Tupamara
9-Ecos do Atlântico

 

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Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.