É impressionante como a tecnologia apesar de nos aproximar de tantas coisas a quilômetros de distância, também nos afastou de muitas outras que estão próximas a nós. Diga a verdade amigo leitor, qual foi a última vez que você fez amizade com alguém, cujo primeiro contato, não fora o virtual?

Pois bem, foi numa época distante onde a telefonia móvel engatinhava  a passos lentos e a internet praticamente era algo embrionário, que na plataforma 14 do terminal rodoviário do Tietê, em São Paulo, que um simples apontar de dedo para uma camiseta resultou em amizade.

Fora assim que meu saudoso pai, junto aos meus avós e tias, conheceram o Sérgio, figuraça essa que proporcionou a este que vos escreve, de agora dentro de um ônibus na volta pra casa, relatar o que foi o Show de Roger Waters, neste último Sábado no Allianz Parque.

Na época, Sérgio que também estava indo para São João da Boa Vista, aos 17 anos de idade, vestia uma camiseta de The Wall (cuja resenha você confere aqui). E nas palvras dele, cansado de ser encarado por um cabeludo de óculos a lá John Lennon (meu pai) resolveu perguntar o que o tal sujeito tanto apontava. Era a camiseta do Pink Floyd, banda que tanto meu pai como meu avô sempre veneraram. A partir daí, uma amizade entre os três se desenvolveu.

Eu, particularmente, não conheci o Sérgio até meados de 2016, quando no meu atual emprego, comecei a conversar com ele, sem nem passar pelas nossas cabeças de que ele fora um grande amigo do meu pai, e nem na dele de que eu era filho do Moscão (apelido do meu velho).

É amigos, a vida tem dessas pegadinhas, e foi questão de pouco tempo depois disso que em uma conversa recorrente, que contei que minha avó possuia uma banca de jornais na cidade, que aos poucos os pontos foram ligados. Ele descobrira de quem eu era filho, e a amizade que antes eram deles se transferiu a mim.

E foi dessa forma que em maio desse ano, quando descobrimos que Roger Waters estaria em terras brasileiras em uma turnê de despedida, que o Sergio decidiu que não poderíamos perder esse show, me preseteando com um ingresso.

Antes de adentrar a cobertura em si, ressalto que, como fui ao evento como espectador, não tirei fotos. As imagens que ilustram essa matéria serão creditadas aos seus respectivos donos.

Posso dizer sem sombras de dúvidas, que a emoção deste evento fora dupla, primeiro por ser meu primeiro show internacional, mas também por finalmente pisar na casa do meu time do coração, o Palmeiras (outra coisa herdada pelo meu lado paterno).

Então, acompanhado da minha namorada, chegamos até o glorioso estádio, e logo de cara, pude perceber como a organização do eventos estava sendo bem executada, onde todos adentravam aos seus respectivos setores sem maiores problemas ou filas quilométricas. Fomos de pista comum e chegamos poucos minutos após a abertura oficial dos portões às 16h00. E foi sensacional dar a volta até o portão principal do Allianz, acompanhado de uma vasta galera, passando entre carrinhos de lanche e vendedores de camisetas e souvenirs do show (itens piratinhas, mas que carregam um charme próprio).

Poucos minutos após nossa chegada nos encontramos com o Sergio e seu irmão, o “Du” e assim esperamos até a hora to espetáculo se iniciar. Nesse meio tempo ainda tiver a oportunidade de participar de um game quiz, realizado pela produtora Bonus Track, onde quem acertasse um determimado número de perguntas sobre Waters, ganhava um brinde. Bom, posso não tido direito à  meia entrada, mas ganhei um belo par de meias temático de The Wall…

Em relação ao clima, fora o calor incessante que permearia toda a noite, posso dizer que todas as pessoas ali presentes eram bastante agradáveis e pertenciam a faixas etárias diferentes,proporcionando um encontro de gerações que só o Rock é capaz de realizar em relação a outros estilos musicais.

Então às 20h (hora prevista para o início da apresentação) depois de quase assar o público com as luzes de led tanto do estádio quanto do palco, que uma campanhia fora tocada com  uma gravação da voz de Waters que dizia que o show começaria em 15 min. E essa mesma mensagem ecoava pela plateia de cinco em cinco minutos, até o fatídico inicio da apresentação, que contou com a célebre frase (que só ganhou a alcunha de polêmica quando a turnê This is Not a Drill chegou ao Brasil, uma vez que a mesma sempre fora proferida desde o início, em julho de 2022):

“Se você é uma daquelas pessoas que dizem: ‘Eu Amo o Pink Floyd, mas não suporto a politica de Roger, você pode muito bem se retirar para o bar agora.”

A afronta de Waters logo no início da apresentação, foi rebatida com aplausos da platéia, situação bem diferente da última passagem do cantor por terras brasileiras, onde às vesperas de uma eleição foi hostilizado com vaias por um público burro e desinformado, que parecia nunca ter se atentado as opiniões políticas de Roger, que se inclinam à esquerda.

Como minha posição política sempre fora contra o ato de idolatria aos porcos que vivem a nossas custas (independente de quais espctros políticos pertençam) via aos impostos que pagamos, eu adentrei ao show de mente aberta, já sabendo o que esperar e totalmente disposto a aceitar todo o discurso inerente do espetaculo e seu principal idealizador (fato esse que não me matou, tão pouco doeu). Afinal amigo leitor, você pode, e deve, discordar da posição política ou opinião das outras pessoas, mas o respeito ao próximo deve ser tão grande quanto a sua liberdade de expressão…

Imagem por Poder 360

Pois bem, após isso, as luzes se apagam e somos apresentados ao videoclipe da nova versão de Comfortably Numb (um dos muitos pecados recentes do ex Pink Floyd) , que mesmo trazendo Waters trajado como o Doutor que dá uma injeção no protagonista de The Wall, entoando a letra da canção de forma quase fúnebre, que carrega sim certa beleza nessa releitura, em termos de abertura de espetáculo, não funciona muito bem.

Mas essa letargia toda logo se esvai com a trinca clássica The Happiest Days of Our Lives, Another Brick in the Wall, Part 2 e 3. Aí meus amigos não teve uma alma viva no Allianz que não se contagiou com toda a energia que esses clássicos do Pink Floyd exalam.

Ainda mantendo o público aquecido, fui surpreendido com a presença de The Powers That Be, faixa do injustiçado Radio K.A.O.S (resenha aqui) cuja interpretação ao vivo e a experiência de Waters, resultaram em uma otima atualização para a música.

Amused To Death, trabalho lançado em 1990, também fora reverenciado em The Bravery of Being Out of Range. Aqui,Roger começou a exercer o lado político (com frases e imagens no telão) de forma mais mordaz, mas tudo isso somado à música, fatores estes que tornaram a apresentação agradável, tanto para àqueles que estavam ali pelas canções, quanto pelos que simpatizam com a ideologia do cantor, ou ambos.

Imagem por: Bruno Santos | Folhapress

Na sequência, Roger deu boa noite ao público (com o português capenga que todos os artistas internacionais se propõem a fazer desde que o mundo é mundo), apresentando ao público The Bar, uma nova música composta durante a pandemia. Waters explica que o Bar, é um local ideal onde todos àqueles que divergem sobre qualquer assunto podem se juntar e buscarem se entender em um mundo onde a intolerância e pluralidade de ideias parecem cada vez mais anêmicos. Essa nova música, ao meu ver, traz um novo sentido à frase do início da apresentação, deixando de soar como uma expulsão, para um convite a um diálogo…

Mas agora,chegava a parte da apresentação que mais me incomodou (fora a altura baixissima do palco que prejudicou boa parte da minha experiência, mesmo com meus 1.75 de altura) e em momento algum o quesito ideologico passou perto do desconforto que relatarei a seguir.

Bom, tomado um pouco de fôlego com as musicas anteriores, de abordagem mais branda, Roger convidou a todos para uma viagem no tempo, quando o mesmo tocava em outra banda, claro se referindo ao Pink Floyd.

Durante o clássico absoluto Have a Cigar de Wish You Were Here, Waters se propôs a exibir no telão imagens dos ex-companheiros de banda, porém, excluindo uma das peças fundamentais ao sucesso que ele obteve com o grupo, o guitarrista e vocalista David Gilmour. Meus amigos, eu sei bem da divergência entre os dois, mas essa atitude de Roger além de infantil, vai totalmente contra o próprio discurso do show, onde o baixista busca mostrar a verdade por trás das conspirações políticas ao redor do mundo escondida pelos poderosos, mas é capaz de querer buscar apagar uma contribuição importantíssima como a mostrada no decorrer desta turnê.

A situação é ainda mais bizarra quando se olha para o guitarrista em palco Jonathan Wilson, que salvo o timbre vocal, traz no estilo de tocar e aparência uma representação quase perfeita de Gilmour nos anos 70. Não querendo dizer que o músico se preste a imitá-lo, mas acho no mínimo estranho você ter em sua banda, alguém que se assemelha ou remete, e muito, com um desafeto de décadas à fio…

Observações à parte, o set Floydiano dedicado à Wish You Were Here, continuou trazendo a faixa homônima e Shine On You Crazy Diamond (partes VI – IX) em homenagem ao saudoso Syd Barret.

Sheep de Animals, fecha o primeiro ato do show, com direito a uma enorme ovelha inflável sobrevoando o público. Ao final, o show sofre uma pequena pausa dando fim a primeira parte do espetáculo.

Mas em poucos minutos, dois olhos vermelhos surgem do lado direito do palco, e Algie o simpatico porquinho da capa de animals, surge com uma Skin de The Wall e novamente temos um animal inflado rodeando o Allianz Parque.

Então as luzes se apagam uma de minhas faixas favoritas se inicia, In The Flesh. E mesmo sem Waters trajando o classico e polêmico uniforme militar, gostei bastante da nova abordagem para esse clássico, com o cantor em uma cadeira de rodas amarrado a uma camisa de força.

Na sequência, ele se solta das amarras para entoar a poderosíssima Run Like Hell, outro ponto alto da calorosa noite na capital paulista.

Foto de Valter SP

Em mais uma tomada de ar e um reforço nas questões ideológicas, Déja Vu e Is This The Life We Really Want? trazem as reflexões sobre o atual conflito entre Israel e Palestina, uma guerra que perdura há anos, mas que lamentavelmente, parece alcançar o auge bélico e destrutivo neste fatídico ano de 2023…

Após a importante reflexão sobre os direitos humanos, eis que somos arrebatados por uma sequência de músicas de Dark Side of The Moon (graças a São Gilmour, tocadas nas versões originais e não as lançadas na sonífera versão Redux).

Money conta com os vocais de Wilson, fator este que contribui ainda mais para a semelhança que anteriomente mencionei, o que para mim não é demérito algum e de certa forma, me conforta ao ver esse semblante no jovem músico presente no palco. Outra momento satisfatório é ver Waters novamente empunhando o contrabaixo, função essa que realizou na sequência com Us and Them, Any Colour You Like, Brain Damage até a catártica Eclipse, que proporcionou à plateia, um incrivel prisma de lasers que reproduziram com beleza, cores e exatidão a icônica capa de Dark Side of The Moon.

Evocando o último suspiro dentro do Pink Floyd, Roger traz Two Suns in The Sunset de The Final Cut, um alerta reflexivo sobre a possibilidade de uma terceira guerra e um apocalipse nuclear. Olhando a incrivel animação no telão, uma frase dessa música ecoaria por horas a fio na minha cabeça:

“We were all equal in the end”.

E assim encerrando a noite de forma um tanto anti catártica, temos a reprise de The Bar, onde todos os músicos da banda são apresentados, para em seguida sairem do palco com Outside The Wall, faixa que encerra The Wall e a primeira das duas últimas noite de  Waters em terras paulistanas…

Foto: Kate Izor/ Divulgação / Estadão

Essa primeira experiência em um show desse porte não poderia ter sido melhor.

Ver Roger Waters e tudo o que ele representa para a música com a obra do Pink Floyd é mágico, mesmo que para ver um pedacinho minúsculo do musico fora do telão, tenha sido preciso um certo esforço devido a altura baixissima do palco, que deixo aqui ressaltado como a minha unica crítica técnica em relação ao show, uma vez que a acústica do Allianz Parque foi perfeita, tornando audível cada detalhe que saia de cada instrumento ou trilha sonora, como no caso das risadas insanas de Brain Damage ou a caixa registradora e moedas de Money, por exemplo.

A energia e garra do homem em plenos 80 anos de idade é visível, e mesmo com a pausa no meio da apresentação, não consegui identificar um só momento de fadiga enquanto de pé no palco. Creio que o músico, conseguiu dosar de forma inteligente o fator mensagem política e música não tornando o espetáculo em um palanque político, mas ao mesmo tempo sabendo casar os momentos certos de se expressar quando achou necessário.

Em suma meus amigos, se essa é ou não a última passagem de Roger Waters pelo Brasil, e se essa for mesmo a despedida do musico dos palcos, creio que este seja um desfecho com chave de ouro, para uma carreira digna, pavimentada por grandes feitos.

Agradeço de coração ao Sérgio pela oportunidade, à Katia por me acompanhar nessa loucura toda que foi esse sábado e ao “Du” pelas boas risadas que demos na imensidão dessa noite pessoalmente histórica  no Allianz Parque…

 

Set 1:

1. Comfortably Numb (Pink Floyd)
2. The Happiest Days of Our Lives (Pink Floyd)
3. Another Brick in the Wall, Part 2 (Pink Floyd)
4. Another Brick in the Wall, Part 3 (Pink Floyd)
5. The Powers That Be
6. The Bravery of Being Out of Range
7. The Bar
8. Have a Cigar (Pink Floyd)
9. Wish You Were Here (Pink Floyd)
10. Shine On You Crazy Diamond (Parts VI-IX) (Pink Floyd)
11. Sheep (Pink Floyd)

Set 2:
12. In the Flesh (Pink Floyd)
13. Run Like Hell (Pink Floyd)
14. Déjà Vu
15. Déjà Vu (Reprise)
16. Is This the Life We Really Want?
17. Money (Pink Floyd)
18. Us and Them (Pink Floyd)
19. Any Colour You Like (Pink Floyd)
20. Brain Damage (Pink Floyd)
21. Eclipse (Pink Floyd)
22. Two Suns in the Sunset (Pink Floyd)
23. The Bar (Reprise)
24. Outside the Wall (Pink Floyd)

 

 

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.