Existem certas bandas, cuja apreciação e compreensão levam certo tempo, e muitas vezes, pode ser uma questão de amadurecimento. E o Pink Floyd fora um destes casos para este que vos escreve. A banda simplesmente era idolatrada pelos meus saudosos pai e avô, que segundo os relatos de minha avó, colocavam os discos para tocar e se deitavam no chão para juntos ficarem imersos ao som do grupo inglês. Ela ainda me contou, que em muitas dessas ocasiões ambos se emocionavam com a música que emanava das caixas de som.

Cresci ouvindo histórias e mais histórias sobre o tal “PING Floyd” (era dessa forma que eles diziam, ou fora assim que eu na época entendia) e quando ambos faleceram, herdei a coleção de discos que lhes pertencia e claro que os discos do Floyd estavam entre clássicos como o British Steel do Judas Priest e o The Number of The Beast do Iron Maiden. Foi então que ao conseguir a muito custo arrumar o antigo três em um da CCE (um aparelho de som muito comum no final dos anos 80 e 90, cujo além do rádio FM, ainda contava com as funções de CD, K7 e LP) que pude finalmente colocar os discos que ganhara para tocar. Inclusive, vale mencionar que minha avó, junto de meu tio, testemunhara o show que Roger Waters apresentara no estádio do Morumbi em São Paulo em 2012…

Nessa mesma época desenvolvi uma espécie de ritual, onde toda sexta-feira logo após chegar da faculdade, eu escolhia um disco para ouvir antes de dormir. E que aura mágica esse pequeno hábito carregava, com a única pequenina luz vermelha do aparelho sonoro iluminando um quarto escuro…

Mesmo que a rotação não estivesse cem por cento, tive meus primeiros contatos com a música do Pink Floyd em discos como o The Dark Side of The Moon, Animals, The Division Bell (um lindo LP todo azul) e o disco que trago na resenha de hoje, o The Wall.

A priori, algumas coisas me soavam interessantes, ao mesmo passo que outras, me causaram certa estranheza. Ao desistir de colecionar discos e retomar a minha coleção de CDs, tive a felicidade de ser presenteado por minha digníssima namorada com um box maravilhoso contendo a discografia do Floyd em plena totalidade, o Discovery!

Com o passar do tempo e a minha saturação com as sonoridades mais extremas, rumei à atenção novamente para o som do grupo de David Gilmour, Roger Waters, Rick Wright e Nick Mason. E decidi que não ficaria apenas ao âmbito dos discos, partindo assim para uma verdadeira pesquisa sobre a história da banda inglesa. Inclusive fica a minha recomendação do excelente livro Nos Bastidores do Pink Floyd, do escritor Mark Blake, obra esta, cuja leitura finalizei no último final de semana, antes deste texto ser postado.

Apesar de estar resenhando um disco do Pink Floyd, posso afirmar que Waters é a figura central e dominante deste projeto (e também do que viria a ser a última obra do baixista com o grupo, o The Final Cut lançado em 1983). Essa postura já vinha ganhando força desde que o vocalista e guitarrista Syd Barret deixara de ser o letrista e principal figura por trás do quarteto, sendo posteriormente substituído por Gilmour.

Até então, tudo bem, uma vez que o grupo necessitava realmente de uma mão firme que conduzisse a banda. Entretanto meus amigos, devido ao sucesso comercial estrondoso de The Dark Side of The Moon a confiança do letrista do Floyd fora ganhando cada vez mais força, fazendo-o acreditar que ele era a força motriz absoluta na banda, colocando os Muffins (como passara a se referir pejorativamente aos demais colegas) como meros coadjuvantes sem importância. E apesar do bom desempenho coletivo e êxito no disco seguinte Wish You Where Here, Dark Side fora de fato, o último disco onde o Floyd trabalhou com uma banda de verdade, tendo as opiniões e as contribuições de cada membro consideradas e aplicadas ao álbum, mesmo que as letras fossem 100% de autoria de Roger Waters. Não à toa após 50 anos de lançamento, o trabalho além de um clássico absoluto da música, ainda é um fenômeno de vendas no mundo todo.

O conceito para The Wall fora concebido a partir das infelicidades de Waters perante o público e ao próprio sucesso que a banda obtivera. Com a excelente repercussão dos dois discos anteriores e o então recente Animals (1977), o Pink Floyd agora lotava estádios pela Europa e Estados Unidos, atraindo um público (que em grande parte conhecera o trabalho do grupo, a partir do single de Money) ávido por bater cabeça, encher a cara e simplesmente curtir a loucura ao som da banda. Acostumados a tocar em ambientes mais intimistas e para plateias mais comprometidas em buscar compreender tanto a mensagem sonora quanto as contidas nas letras, os quatro músicos de Cambridge sentiam-se frustrados com a atitude dos novos adoradores do Floyd.

Durante uma das últimas apresentações da In The Flesh Tour, Roger respondera com cusparadas aos pedidos dos fãs que pediam incessantemente por Money. Ainda pouco antes de a banda subir ao palco, o baixista descobriu que a produção do show estava ocultando da banda o numero real de pessoas presentes no local. Para engrossar ainda mais o caldo, a relação dele com os demais integrantes começara a dar sinais de ruptura e David GIlmour não retornara para o rotineiro bis que a banda sempre executava ao final do set principal. Com todos os infortúnios acarretados, o músico comentara com a equipe técnica que certas vezes gostaria de construir um muro que separasse o Pink Floyd da plateia.

Ao final da turnê, Gilmour e Wright trabalharam respectivamente nos discos de estreia como solistas, sendo eles David Gilmour e Wet Dream, ambos lançados em 1978. Já o baterista Nick Mason se ocupara com a produção do disco Green de Steve Hillage. Enquanto isso Waters, compora dois novos conceitos para o que viria a ser o décimo terceiro disco da carreira do Floyd. A demo Bricks in The Wall fora a escolhida pela banda ao se reencontrarem no recém-inaugurado estúdio Britannia Row. Já o segundo conceito seria engavetado, posteriormente se tornando o disco de estreia da carreira solo de Roger, The Pros and Cons of Hitch Hiking (1984). Mais tarde, o nome fora encurtado para simplesmente, The Wall.

Waters decidira exorcizar os próprios demônios encarnando-se na figura de Pink, um grande astro do Rock N Roll que crescera sob a ausência do pai, morto durante a Segunda Guerra Mundial, e sob a tutela de uma mãe superprotetora, além de posteriormente sofrer nas garras dos professores na escola. Todos estes traumas culminariam futuramente na construção do muro citado no título do trabalho.

E toda essa primeira da parte da história é construída e contada no primeiro disco (ou CD) de The Wall, tendo início com a catártica In The Flesh?, Que apresenta o personagem Pink em um de seus devaneios como um ditador fascista em pleno comício.

Na sequência The Thin Ice traz uma atmosfera acolhedora que aos poucos vai se transformando em sufocante e opressora, representando a falta do amor paterno causado pela morte do pai de Pink durante a guerra.

Todas as mazelas sofridas nos anos estudantis são refletidas na trinca que se tornou o maior hit do Pink Floyd conhecido até mesmo por pessoas não familiarizadas ao Rock, Another Brick in The Wall Pt1, The Happiest Days of Our Lives e Another Brick in The Wall Pt2.

Após a rebeldia iminente das faixas anteriores, a atmosfera de Mother até pode enganar o ouvinte com a aveludada voz de Gilmour representando a protetora mãe “afanando” as dúvidas e inseguranças de Pink (Waters).

Goodbye Blue Sky é uma rápida, bela e ao mesmo tempo sombria canção ,que externa os medos do jovem protagonista em relação a guerra, assim como a solidão iminente e vazio emocional de Empty Spaces.

Young Lust apresenta Pink já sendo um roqueiro bem sucedido que agora busca arrastar uma groupie para dentro do quarto. A atmosfera aqui é um pouco mais animada e a letra trata da futilidade das relações superficiais. One of My Turns é um verdadeiro show de interpretação de Roger, demonstrando um ataque psicótico de Pink que rapidamente afugenta a companheira de quarto.

Don’t Leave Me Now relata a ruína do relacionamento do astro com a esposa, situação essa não muito diferente do que acontecera com Waters anos antes, quando ao ligar para casa durante uma das turnês do Floyd, fora atendido do outro lado da linha por outro homem.

A terceira parte de Another Brick in The Wall traz toda a insatisfação de Pink com a própria falta de identidade e o inconformismo por ser apenas mais um mero tijolo no grande muro da sociedade. Goodbye Cruel World fecha a primeira parte da Opera Rock, trazendo o protagonista agora disposto a abandonar a realidade para se enclausurar de vez no conforto e isolamento perante o muro psicológico que erguera no decorrer da vida. Nas apresentações ao vivo, um muro era de fato erguido em frente ao palco, realizando o desejo de Waters de se isolar do público. Ao final da décima terceira faixa do disco, o último bloco era colocado, finalizando assim a construção.

O segundo ato se inicia com uma das faixas favoritas deste que vos escreve. Hey You é um grito desesperado e uma tentativa frustrada de Pink se comunicar com aqueles que estão além do muro, trazendo na sonoridade da faixa uma aura misteriosa, porém, carregada de certa beleza em determinadas nuances. Is There Anybody Out There? são os requícios finais destes gritos de Pink até que a consciência o arrebata totalmente com a chegada da melancólica e bela Nobody Home.

Seguindo a languida beleza da faixa anterior Vera traz certa homenagem a Vera Lynn, cantora britânica que viveu até os 103 anos, consagrada pelas belas canções que produzira durante a Segunda Guerra. Uma faixa comovente, digna de encher os olhos. Aqui Pink divaga sob a futilidade dos conflitos bélicos, que transformam crianças do mundo todo em órfãos como ele. O apogeu desse raciocínio chega com Bring The Boys Back Home, uma suplica grandiosa, orquestrada pelo mítico maestro Michael Kamen, pelo fim dos conflitos e retorno dos soldados para as famílias.

Comfortably Numb é outra faixa que se tornou icônica na carreira do Pink Floyd e talvez o ápice da parceria Gilmour e Waters, tornando-se indispensável em qualquer apresentação, fosse da banda ou dos integrantes em carreira solo. Apesar de ser baseada em uma experiência proporcionada pelas injeções que combatiam a hepatite do baixista durante a turnê In The Flesh, a décima nona faixa do disco mostra Pink no auge da desconexão com o mundo ao ser sedado pelos médicos que o encontram desacordado no quarto de hotel. A música ainda apresenta um dos mais belos trabalhos de guitarra de todos os tempos na história do Rock n’Roll, sendo uma das marcas registradas do talento genial de David GIlmour.

Em meio ao devaneio causado pelas medicações, The Show Must Go On mostra a relação precoce de Pink com a música, os primeiros grupos que formou mesmo com a desaprovação da mãe e as rasteiras que levou da insaciável industrial fonográfica. Mesmo com todos os percalços desta caminhada, o rockstar  percebe o quão a música é uma importante ferramenta para se expressar e comunicar-se com o mundo.

Mas a faceta do ditador fascista do início do disco retorna com força total com a revisitação de In The Flesh. Trazendo o tom imponente da faixa , o líder está mais uma vez perante uma plateia de adoradores, os convocando para perseguirem toda e qualquer pessoa que ele considera como “inimigos”, uma representação talvez, de toda a ameaça que o mundo ao redor proporcionava durante a vida. A perseguição destes elementos neste ponto alto de paranoia nos leva a eletrizante Run Like Hell, que aponta todos os sentimentos que Pink condenava, como a necessidade de se encaixar na sociedade, se apaixonar e seguir um padrão considerado comum.

Ainda mais encarnado no personagem ditatorial, o exército de seguidores agora parte com força total contra as minorias em Waiting For The Worms. Aqui podemos também interpretar como uma crítica a todos os líderes que buscam inflamar o público a partir de discursos de ódio (coisa bem atual, diga-se de passagem). Conseguindo recuperar a lucidez em meio a todo esse caos, Stop traz o despertar do protagonista, que se livra do ditador perguntando-se de fato, era culpado por tudo que passara até então.

Mas para sanar todas estas dúvidas, The Trial apresenta a figura emblemática do Juiz (entre outras figuras ilustradas pelo talentoso desenhista Gerald Scarfe) em um dos desfechos mais dramáticos e tensos na história de um disco.  Aqui, um verdadeiro júri é formado, onde Pink é acusado de demonstrar sentimentos, crime que cometera na faixa anterior. Ainda nessa cena as figuras caricatas do professor, da esposa e da mãe, aparecem como testemunhas de acusação. O antigo mestre, relata que sempre soube que o antigo aluno jamais seria nada, e que se seus métodos educacionais tivessem sidos levados em consideração, ele poderia ter tomando certo rumo. A esposa o acusa de omissão, apontando que o ex-marido deveria ter falado mais com ela. Já a mãe chega desesperada para proteger o tão valioso bebê, dizendo que ele não estaria nessa encrenca toda se não a tivesse abandonado.

Munido de todas as acusações, o juiz então lança a sentença. Horrorizado pelos “crimes” cometidos, o meritíssimo condena Pink a ter todas as suas fraquezas expostas perante a sociedade, pondo fim assim ao grande muro que o protegia. O fim do disco culmina em Outside The Wall, com Pink encarando o mundo de peito aberto e descobrindo que tudo aquilo que de fato importa sempre se encontrara no lado de fora do muro…

Lançado oficialmente em 30 de novembro de 1978, The Wall a principio, fora desdenhado pelos executivos da gravadora Columbia, que somente depois de muito bate boca com Roger Waters, aceitara lançar o disco como um álbum duplo, mesmo que ainda com sérias ressalvas. Porém as preocupações dos engravatados foram enxotadas quando o single de Another Brick In The Wall Pt2 atingira a primeira posição nas paradas de sucesso em vários países como Reino Unido, Estados Unidos, Portugal, entre outros. No mesmo dia em que o disco fora lançado, Waters cedera entrevista ao DJ Tommy Vance da BBC Radio, que tocou o disco em sua totalidade. As opiniões das mídias especializadas ficaram divididas, mas isso já não era um fator predominante que poderia afetar o desempenho de vendas do disco. Estima-se que entre 1979 a 1990 The Wall tenha vendido em torno de dezenove milhões de cópias mundialmente.

Mas se por um lado a vendagem ia bem, por outro, a banda vivia um verdadeiro inferno, com Richard Wright, um membro fundador do Pink Floyd, sendo demitido por Waters para logo depois ser reintegrado ao grupo como um músico contratado para a turnê de divulgação do trabalho. Ironicamente, o tecladista seria o único membro da banda a lucrar com a turnê, uma vez que como contratado, recebia um salário. Já os demais membros da banda, tiveram de investir em todo o aparato cenográfico do novo espetáculo, que agora, elevava tudo o que o Floyd fizera até então em quesito espetáculo, à enésima potência. Como Gilmour revelaria em entrevistas, The Wall era um disco de Roger, feito por Roger e para Roger, o que em grande parte, impossibilitou com que os demais membros pudessem contribuir para o resultado final. O guitarrista seria o único membro a ter mais voz no projeto depois de Waters.

Em suma meus amigos, The Wall ainda haveria de render muito tanto para a banda que o gravara, quanto para o idealizador Roger Waters, nos anos que se seguiriam. Próximo à chegada dos anos noventa e já longe do Pink Floyd, o baixista já em carreira solo em parceria com grandes personalidades da musica pop (como Scorpions e Cindy Lauper), elevaria ainda mais o conceito do álbum, com um show realizado e filmado em Berlim, pouco tempo depois da queda do muro que dividia a Alemanha em dois.

O disco é um clássico incontestável da história da música e um dos que mais ouvi nesta empreitada rumo a discografia do Pink Floyd. The Wall, assim como os livros de George Orwell, acabaria sendo usado em debates políticos tanto por grupos de esquerda, quanto de direita (que se dizendo fãs da banda, nunca haviam percebido as mensagens mais alinhadas ao espectro oposto contidas nas letras de Waters) que se indignou com as mensagens que o músico exibira nos telões durante as últimas passagens pelo Brasil.

Mas creio que galgar o conceito do disco apenas às questões políticas é como interpretá-lo de forma preguiçosa ou pelo menos incompletamente. Sim amigo leitor, sei perfeitamente da visão de mundo de Roger e consigo decifrar as nuances presentes em The Wall, assim como os demais trabalhos que o músico lançara com o Pink Floyd. Mas toda a história do baixista (e o alter ego Pink), para quem vos escreve, parece sobressair-se muito mais perante as estocadas contra os desafetos políticos de Waters, trazendo ao final, uma reflexão sobre as nossas vivências e como os medos e traumas da vida podem impactar nosso desenvolvimento mental e social.

E se você gostou da história do disco, saiba que The Wall também se tornaria um filme em 1982. Estrelado por Bob Geldof (o mesmo homem que seria responsável por unir o Floyd por uma última vez em 2005) e dirigido por Alan Parker, o musical é uma excelente experiência que amplia a imersão da obra (desde que claro, o espectador já conheça todo o conceito do disco que inspirara o longa metragem) e a complementa.

Se ainda existir alguém na face da terra que ainda não tenha ouvido The Wall, se muna de bons pares de fones de ouvidos e se isole com o encarte do disco junto a Pink e seus companheiros de banda para adentrar neste louquíssimo universo do delírio humano.

Tracklist
1-In The Flesh
2-The Thin Ice
3-Another Brick in The Wall,Pt1
4-The Happiest Days of Our LIves
5-Another Brick in The Wall, Pt2
6-Mother
7-Goodbye Blue Sky
8-Empty Spaces
9-Young Lust
10-One of My Turns
11-Don’t Leave Me Now
12-Another Brick in The Wall, Pt3
13-Goodbye Cruel World
14-Hey You
15-Is There Anybody Out There?
16-Nobody Home
17-Vera
18-Bring The Boys Back Home
19-Comfortably Numb
20-The Show Must Go On
21-In The Flesh
22-Run Like Hell
23-Waiting For The Worms
24-Stop
25-The Trial
26-Outside The Wall

 

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.