Como afirmei no último texto mensal desta coluna, uma de minhas formas favoritas para estudar as origens de um fenômeno cultural é investigando o surgimento do nome que o define, bem como a maneira como esse nome foi ganhando o sentido que conhecemos hoje.

Então, dando sequência à reflexão iniciada no mês passado, vamos finalmente olhar para a origem do termo “Heavy Metal” como forma de nomear um tipo de música. Que momentos reveladores essa história nos possibilita?

A principal fonte de informação para o texto a seguir foi o excelente artigo de Deena Weinstein, Just So Stories: How Heavy Metal Got Its Name—A Cautionary Tale, publicado na revista Rock Music Studies em 2014, e que você pode consultar aqui.

AS ORIGENS DO TERMO “HEAVY METAL” COMO NOME DE UM ESTILO DE MÚSICA

Excetuando a tabela periódica, provavelmente a menção mais antiga na cultura popular para “Heavy Metal” apareceu em um romance de William Borroughs, um livro de ficção científica chamado Nova Express, de 1964. Nesse livro,Heavy Metal Kids” era o nome de uma gangue de meninos de rua. Depois, em 1967, o mesmo termo, em referência ao livro do Burroughs, foi usado no título de um disco da banda psicodélica inglesa Hapshash and the coloured cloath: The human host and the heavy metal kids. No contexto específico da música pop, essa é a primeira vez que o termo aparece, mas não como o nome de um estilo musical ou de um tipo de som, simplesmente como uma referência literária que aparece no álbum.

O mesmo vale para a famosa música do Steppenwolf, Born to be wild, de 1968, em que um dos versos menciona um “trovão de metal pesado” (“heavy metal thunder”) para tentar descrever a experiência de dirigir uma motocicleta nas estradas de rodagem:

I like smoke and lightnin’
Heavy metal thunder
Racing with the wind
And the feeling that I’m under[1]

…que figura como música isolada no contexto maior do rock da época, ainda tateando um universo de sensibilidades que estava longe de ser definido de maneira exata na forma de som. “Heavy Metal” não possuía qualquer conotação específica quando a música foi lançada, tampouco a intenção de seu uso é a de atribuir identidade a um estilo. Na verdade, a coisa foi bem mais prosaica: o autor dessa música (Mars Bonfire, irmão de Jerry Edmonton, baterista do Steppenwolf), afirmou, mais tarde, que só depois que havia escrito a canção percebeu que havia conhecido o termo “heavy metal” estudando a tabela periódica na escola. Alguma sugestividade misteriosa na união dessas duas palavrinhas pareceu-lhe adequada para falar da vida sobre rodas (o ronco da motocicleta, talvez?), mas, até aqui, o termo ainda circulava de maneira solta, sem qualquer associação de continuidade entre a forma como foi usado por Burroughs e pelos Hapshash e a do Steppenwolf. Cada um chegou a ele por caminhos distintos.

Também não parece haver nenhuma coerência especial entre todas essas formas de “Heavy Metal” mencionadas até aqui e a primeira vez em que, aí sim, temos notícia do seu uso para tentar definir um tipo de música. Isso aconteceu quando o famoso crítico Lester Bangs, escrevendo para a revista Rolling Stone a respeito do disco Canned Wheat, da banda canadense Guess Who, na edição de 7 de fevereiro de 1970, usou o termo “heavy metal robots” (robôs do heavy metal) de maneira pejorativa, com o sentido de algo mecânico, não-criativo, para descrever o som de um conjunto de bandas da época em relação às quais o Guess Who se destacava – sem, entretanto, mencionar que bandas eram essas[2]. Bangs escreveu:

“Com um belo single, ‘Undun’, por detrás, são bastante revigorantes na esteira de todos esses ‘heavy metal robots’ do ano passado”

Lester Bangs
Lester Bangs

Poucos meses mais tarde, em novembro de 1970, foi a vez de Mike Saunders trazer as palavrinhas mágicas na revista Rolling Stone, agora para falar do álbum As safe as Yesterday Is, do Humble Pie. Ele usou “heavy metal-leaden shit rock” para descrever pejorativamente a seção rítmica do disco, que entendia como dura, engessada demais, sem o balanço ou o swing mais clássico que o hard ou heavy rock tendiam a ter na época[3].

O próprio Saunders, em email de 2006 a Deena Weinstein, relembrando a ocasião de sua crítica ao Humble Pie, disse que o álbum As Safe as Yesterday Is

“…era duro, túrgido, quer dizer, plúmbeo (chumbado) em sua falta do swing hard rock da bateria. Já que ‘heavy’ vinha sendo usado há uns três anos como termo comum, por exemplo, em ‘heavy rock’, então por que não inserir um ‘leaden-metal’ ali no meio? HEAVY leaden-metal ROCK. Invertendo, então, ‘metal-leaden’ deve ter soado bem mais chamativo no papel”.

Ou seja: no raciocínio de Saunders, o “leaden-metal/metal-leaden” foi introduzido mais como adjetivo de qualificação negativa acoplado a um gênero já existente como conceito na época, o Heavy Rock – e não uma referência substantiva a um gênero novo, o Heavy Metal. Era a desqualificação da forma como o Humble Pie tocava o Heavy Rock, não a criação de um termo que designasse um novo estilo. Só que, um pouco depois, em maio de 1971, o mesmo Mike Saunders, dessa vez na revista Creem, usou o “heavy metal” de maneira bem mais substantiva, agora ao falar do álbum Kingdom Come, do Lord Baltimore, dizendo que “dominavam os melhores truques de heavy metal disponíveis” – num contexto, portanto, bem mais positivo que os anteriores, ou ao menos neutro[4].

Mike Saunders
Mike Saunders

De forma que, podemos ver, o termo “Heavy Metal” já tinha sido proferido uma ou outra vez no início dos anos 1970 para se referir a um jeito de fazer música, de forma, entretanto, sempre pontual, isolada, e, acima de tudo, adjetiva, geralmente pejorativa, sem qualquer esforço, vontade ou, poderíamos dizer, qualquer necessidade de transformar esse termo num substantivo, no nome de um gênero que reunisse artistas variados numa direção musical comum… Na verdade, as bandas da época que praticavam um estilo de rock um pouco mais pesado que o padrão eram referidas através de vários nomes diferentes, todos relativamente soltos, mas que, ainda assim, parecem ter sido, à época, mais repetidos, conhecidos e consistentes que o incipiente “heavy metal”. É o que afirma Deena Weinstein:

“inicialmente, havia vários nomes alternativos para o tipo de rock que eventualmente ficaria conhecido por heavy metal. O mais antigo foi o ‘heavy rock’, aplicado ao Cream, Blue Cheer e, especialmente, Led Zeppelin, no fim dos anos 1960, permanecendo em uso, especialmente na Grã-Bretanha, no início dos 1970. O Black Sabbath, tendo saído da mesma cena Birminghaniana de Robert Plant e John Bonham, também era frequentemente classificado como ‘heavy rock’ (por um curto período, o Sabbath chegou a ser considerado ‘prog rock’, como pode ser visto em pôsteres das gigs da banda em 1970, além do fato de que, em sua primeira turnê nos EUA, eram a banda de abertura do Yes).[5]

Além do heavy rock, Deena menciona o hard rock, que “era outro termo descritivo, não tanto para um gênero, mas para um amplo cinturão de música rock que tinha o blues-rock como denominador comum”; e, finalmente, o downer rock:

“…usado especialmente nos EUA para o Black Sabbath, Grand Funk, Bloodrock e outros. Essa designação era utilizada pelos críticos de várias formas. Primeiro, as letras das bandas reunidas sob esse nome eram vistas como sendo antípodas da alegre e esperançosa viagem hippie. De fato, essas bandas focavam mais nas verdades sombrias da realidade, como a guerra e a morte. E uma segunda referência para ‘downer’ era a inclinação de alguns de seus fãs ao uso de barbitúricos. Essas drogas depressoras, ou tranquilizantes, eram conhecidas como ‘downers’”.

Agrupadas neste conceito “downer”, então, costumavam ficar aquelas bandas com letras mais sombrias e menos otimistas que o padrão hippie da época, além da sonoridade muitas vezes “arrastada”, que remete ao efeito sedativo dos barbitúricos, ao contrário da coisa mais “estimulante” do LSD hippie. De qualquer maneira, o “rock pesado”, se podemos chamar assim, era um fenômeno nascente e que, no início da década de 1970, ainda desafiava as denominações da crítica. Só para termos ideia de como tudo estava bagunçado e indefinido sobre como lidar com esse tipo de música pesada que estava surgindo, vejam esta resenha de um show do Black Sabbath em 1971, assinada por Robin Green. A manchete diz assim:

“Twelve Homesick Hours with the Dark Princes of Downer Rock: How Black Was My Sabbath.”

DOZE HORAS SENTINDO FALTA DE CASA COM OS PRÍNCIPES SOMBRIOS DO DOWNER ROCK: QUÃO NEGRO FOI O MEU SABBATH.

E segue:

“Todas as letras de suas canções de IRON-HARD ROCK contém imagens de um mundo condenado, aqui na Terra, a frustração humana, marés atômicas e, atravessando tudo isso, a risada do demônio. Tudo com uma música dolorosamente alta e fúnebre. O público adorou”.

A descrição do som de bandas como o Black Sabbath ainda era imprecisa, tateava no escuro: “downer rock”, na manchete… depois, “iron-hard-rock”… Os jornalistas e críticos estavam arriscando combinações de palavras que tentassem dar conta de certas sonoridades que estavam surgindo. Ainda assim, no início dos anos 1970, a ideia de “heavy metal” para falar de música já havia sido parcialmente cunhada, embora longe de ter a força e a definição que encontrasse correspondência exata num circuito sociocultural representativo de uma parcela significativa da sensibilidade do fim do século, como acabou acontecendo mais tarde, na década de 1980.

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A semente fora lançada em solo fértil, e logo as primeiras hastes despontariam do meio das pedras (“rocks”), se me permitem o trocadilho. Mas isso será tema de reflexões futuras. Agora, encerro com uma excerto de Deena Weinstein que julgo tão verdadeiro que poderia, não houvesse sido formulado por ela antes, receber a minha própria assinatura:

“Sob outro nome, teria sido a mesma música, ou até a mesma fan-base, que reuniu-se sob o nome ‘heavy metal’? O nome de um gênero denota o próprio gênero, e serve como uma espécie de abreviação para as regras do dito gênero. Mas faz mais do que isso: chama a atenção para como ouvir o gênero, que tipo de sentimento é apropriado para ouvi-lo. Ou seja: o nome do gênero conota uma sensibilidade. Como seria se o punk tivesse sido chamado de teen rock ou trash rock, ou se o grunge fosse chamado de Seattle rock ou complainer rock? Não apenas um gênero sob qualquer outro nome é outro gênero, mas mesmo quando esse outro nome abarca exatamente a mesma música, essa música é apreciada segundo uma sensibilidade distinta. O nome do gênero media a música com as audiências, criadores em potencial e críticos. E raramente um gênero de cultura popular teve um nome tão poderoso quanto o heavy metal”.

Notas:

[1] Poderíamos dizer que, aqui, com o Steppenwolf, já se avança um pouco na direção da associação entre o termo (Heavy Metal) e o tipo de música que um dia, futuramente, ele iria descrever, porque o “Heavy Metal Thunder” refere-se ao som que é feito pela motocicleta que o eu-lírico está dirigindo na música. Essa figura de linguagem aproxima fenômenos do mundo natural (o trovão) com o universo das máquinas (a motocicleta). Como o trovão é um símbolo de poder e de ira divina em muitas mitologias, ao ser associado à fúria de uma motocicleta selvagem, veículo de afirmação do rebelde motociclista em relação ao mundo, temos já muitos dos elementos do que o Heavy Metal iria se tornar depois. Vejam se isso não parece familiar: poder, fúria, fenômenos da natureza arrebatadores e de força incontrolável, estilo de vida selvagem, máquinas poderosas… São temas de um ethos que será desenvolvido pelo Metal mais tarde. Além do que, até onde me consta, é a primeira música gravada em torno dessa temática, que depois se tornaria um tópico importante da música pop setentista, de usar a motocicleta de maneira solitária para pegar a estrada e viajar longas distâncias. Músicas anteriores falavam da motocicleta como veículo de passeio e/ou utilizado para namorar. Era um signo de socialização e flerte, não de sensação, liberdade e aventura, como no Steppenwolf.

[2] Na verdade, um dos dados biográficos bem conhecidos de Lester Bangs é que fora um jovem muito ligado à literatura beatnik, então é bastante possível que tenha tirado a ideia de “heavy metal robots” dos livros de Borroughs.

[3] A música de abertura desse disco é um cover de Steppenwolf, o que talvez mostre que há uma espécie (ainda incipiente) de familiaridade musical que começa a se esboçar.

[4] Outra coisa interessante nesse texto do Saunders é o uso da palavra “sludge” para referir-se ao som do Grand Funk Railroad.

[5] O contrário também aconteceu: em algumas ocasiões, o Yes foi a banda de abertura para o Black Sabbath.