Por que nos ocupamos tanto em nomear os estilos de música? Há alguma função nisso ou é apenas capricho e chatice?

Neste artigo, a ideia inicial era fazer uma retomada da história do termo “Heavy Metal” como nome para classificar um tipo de música. Quando sentei para escrever, entretanto, pareceu-me importante introduzir a questão com uma reflexão acerca da importância (ou não) de nomear os estilos de música que ouvimos. Por que fazemos isso? Tem alguma função ou é só capricho e chatice?

Então, hoje, antes de encarar a tarefa principal, deixo um pequeno debate (necessário ou caprichoso?) introdutório e, no próximo, discutirei, com certo grau de detalhe, a história atribulada, cheia de contratempos, de como essas duas palavrinhas juntas surgiram, foram ganhando forma e sentido e ajudaram a criar e a identificar a nossa subcultura.

O MUNDO SONORO E AS NOMENCLATURAS: por que batizamos estilos?

Existem muitas maneiras de tentarmos reconstituir a história de um fenômeno social ou cultural, e uma das que considero mais interessantes é a investigação das origens dos termos que o designam. Isso porque a atribuição de um nome é das tentativas mais claras de estabelecer o fenômeno enquanto elemento identificável, destacável do todo indiferenciado no qual a realidade encontra-se diluída – e, consequentemente, a partir de seu nome cada fenômeno pode ser partilhado pelos indivíduos na forma de uma experiência comunicável e cognoscível. Nos nomes, definem-se e delimitam-se as coisas que, sem esse nome, perceberíamos apenas de maneira precária e/ou desarticulada – ou até, em certos casos, nem as perceberíamos. Em outras palavras, sem um nome, o fenômeno não existe – ao menos na esfera cognitiva.

Notem-se, a título de exemplo, as discussões acaloradas da última década sobre os novos conceitos trazidos a público para delimitar certos comportamentos e automatismos sociais que atravessaram muitas gerações sem serem bem distinguidos: antes de me apresentarem aos anglicismos “love bombing”, “gaslighting”, “mansplaining”, “manterrupting”, por exemplo, ou à ideia de “racismo estrutural” e outros tantos termos que mudaram drasticamente as nossas formas recentes de perceber o mundo, eu não sabia que essas situações existiam de maneira tão substancial, embora acontecessem diante dos meus olhos cotidianamente e só fossem percebidas, quando o eram, em termos difusos, desarticulados de sua verdadeira dimensão social. Delimitar os fenômenos através de um nome, assim, foi importante para criar a própria noção de sua existência, os aspectos dessa existência e o sentido dela; o que, além do mais, facilita a comunicação e a participação coletiva, dando contornos e propriedades aos eventos do mundo. Em outras palavras, um nome “substantiva”.

Adão nomeando as feras, de William Blake.

Obviamente, nenhum fenômeno cultural, artístico ou comportamental acontece em um vácuo histórico e social. Tudo está articulado a contextos que dão a dimensão mais exata para cada nome e a pertinência de sua aplicação. Nem toda vez que alguém é acusado de agir com mansplaining, por exemplo, gerará consenso quanto ao uso do termo, assim como nem todo caso de mansplaining assim nomeado possui a mesma intensidade ou sentido. Em outras palavras, a diferença contextual faz com que a ocorrência do termo tenha identidades e validades diferentes em cada caso, embora, pelo estabelecimento de padrões recorrentes, possamos sim esboçar um sentido genérico para esses substantivos. Da mesma forma, falar em “Heavy Metal”, hoje, possui algumas conotações diferentes daquelas que o termo tinha na década de 1980 e, certamente, muito diferentes, inconciliáveis às vezes, daquelas que tinha no início da década de 1970[1]. O termo “Power Metal”, por sua vez, tem uma história particularmente interessante: diz-se que sua aplicação era diferente dependendo do lugar em que fosse empregado, na Europa, no Canadá ou nos Estados Unidos – enquanto, no lugar onde eu cresci, no interior de Santa Catarina, sequer existia, embora também ouvíssemos, com outro nome, aquelas músicas.

Outra questão interessante é que o nome não apenas identifica o fenômeno (como dado completo, anterior ao nome), mas pode também ajudar a criá-lo. A partir do momento em que algo é nomeado, as características distintivas daquilo são mais ou menos isoladas do entorno de outros fenômenos que podem ser confundidos, e a percepção dessas características distintivas faz com que nosso comportamento também se altere em relação a elas. Quando um crítico usa, por exemplo, pela primeira vez, o termo “Thrash Metal” para distinguir o som de uma banda em relação às outras agrupadas juntas em uma época, ele pode estar educando a audição dos leitores para que percebam essas características distintivas dessa banda específica como elementos desejáveis em uma música; ele está “chamando a atenção” e “criando a noção” dessas características. Então, não seria exagero dizer que, através da cunhagem do termo, o crítico também está dando um passo decisivo na própria criação do “Thrash Metal” enquanto forma sonora, pois, se o termo colar, se passar a ser de fato usado por uma comunidade de ouvintes, trará as condições para que surja um público específico, interessado nesse som com esse nome “Thrash”[2], um nicho underground ou até mercadológico e, consequentemente, bandas que passarão a explorá-lo, usá-lo para definir-se, tudo isso em torno de uma busca cada vez mais clara pelos tais pontos distintivos que fazem um som soar “thrash” – e não “speed”, ou “power” etc.

Voltando aos exemplos de fora do universo musical, vejam este: se alguma liderança política e/ou intelectual tenta definir determinado comportamento dos militantes antirracistas com o nome “racismo reverso”, e se esse conceito colar entre a comunidade de seus seguidores, agora, de alguma maneira, o fenômeno do “racismo reverso” passará de fato a existir em suas mentes, pautando sua percepção de mundo e até fazendo com que o identifiquem em situações da realidade. Novamente, o nome “substantiva”, “dá forma”, “cria”, mesmo que esteja dando substância a um delírio, a uma ilusão.

Por isso, o ato de nomear fenômenos tem uma dimensão dupla: ao mesmo tempo que ajuda a dar clareza sobre a realidade, também ajuda a criá-la, já que o real é um jogo dialético entre a percepção “bruta” e a linguagem[3].  Nomear, assim, pode ser “educar” ou “iludir”, mas em todo caso é um gesto de direcionamento de nossa percepção sobre o mundo.

É por isso que tentar nomear o estilo das bandas musicais que gostamos, e agrupá-las em conjunto sob um nome x ou y, é uma tarefa ao mesmo tempo tão divertida, elucidativa, mas muitas vezes complicada e até contraproducente. O lado produtivo e divertido é que, ao tentar nomear, estamos fazendo um exercício de descrever e distinguir a especificidade do que estamos ouvindo, organizando a experiência através das similaridades ou diferenças de características que somos capazes de identificar em relação ao contexto mais amplo do mundo da música. O gesto de nomear, então, ajuda a desenvolver a nossa “acuidade perceptiva”.

Por outro lado, o império dos nomes pode produzir um efeito maléfico de enquadrar demais a expressão das bandas que amamos e trancá-las em certas “caixas” que, ao contrário de desenvolver a nossa capacidade de percepção livre, limitam-nos a características x ou y ditadas pelo meio social e cultural que apropriou-se de cada nome[4]. Se me apresentam uma banda que nunca ouvi como uma banda de “Heavy Metal Clássico”, essa definição exercerá alguma influência na minha audição (e quanto menor a minha independência, conhecimento e destreza para a formulação auditiva, maior será a influência exercida), direcionando a minha percepção para certas características do som em detrimento de outras. Ainda, a solidificação dos nomes tem o poder de gerar uma tradição: se o nome “Death Metal” for aceito pela comunidade de ouvintes de tal tipo de música, é esperado que as características que distinguem esse som para o público que o reivindica passem a ser cada vez mais exploradas pelas bandas que queiram atingir esse público, o que, em casos de rigidez extrema, estabelece quase que uma “checklist” de características que precisam ser cumpridas. Novamente, isto tudo não é “bom” nem “ruim”: é complexo. Um nome vago demais e de definições imprecisas não será capaz de gerar a identidade necessária para que o estilo passe a existir num certo círculo (uma “cena” de artistas e público); por outro lado, um nome que atribui sentido muito rígido tende a limitar o desenvolvimento do estilo a características muito específicas, que acabam com a possibilidade de criação livre e tenderão, cedo ou tarde, a cair na caricatura.

Então, como quase tudo na vida, nomear estilos e alocar as bandas que amamos em conjuntos de oposição e semelhança é uma tarefa benéfica, desde que feita com discernimento e moderação – o que nem sempre é tão fácil de resolver. A história do termo “Heavy Metal” passou por todas essas disputas: de “vago demais”, em seus primórdios, a “rígido demais”, em algum meado dos anos 1990. O fenômeno, em consequência, também já teve momentos correspondentes, na percepção social, de indefinição ou definição excessiva. E é sobre isso, sobre a história do nome “Heavy Metal” e sua relação com a música e a cultura que tenta definir, que iremos falar no próximo artigo desta coluna.

Até o mês que vem!

Notas:

[1] Ao ponto de não ser implausível conversarmos se estes (o termo “heavy metal” na década de 1970 e hoje) não seriam conceitos diferentes, mais do que a transformação contextual na história de um mesmo conceito. Apenas para acender a faísca desta polêmica, reparem que falar em “heavy metal”, na década de 1970, tinha função muito mais adjetiva que substantiva.

[2] “THrash” – com esse “h” que, por muitos anos, eu nem sabia que existia – é uma forma de descrever a batida de cabeça dos metaleiros, sinônimo do “bang”, de “headbangers”. Obviamente, isso dirige a nossa atenção e os nossos desejos para as características sonoras correspondentes (a mistura velocidade-cadenciamento, por exemplo). Na minha adolescência, entretanto, o nome que conhecíamos era “trash”, sem o “h”, ou seja: “lixo”. Nossa atenção de ouvintes era mais dirigida, então, para a sujeira e o desleixo com certos aspectos do bom gosto familiar do que para o investimento em velocidade-cadenciamento dos riffs. São experiências de audição relativamente distintas, apenas por serem mediadas por um nome distinto. Um nome pode não mudar “tudo”, mas muda, sim, algumas coisas significativas.

[3] Separação apenas didática e argumentativa.

[4] O mesmo vale, certamente, para os conceitos sociológicos e comportamentais que trouxe de exemplo no início deste texto.