Em 2014 foi lançado na internet um documentário que se dedicou a investigar especificamente as interações do público que frequenta os shows de metal. Ramon Teixeira e Bruno Marota tiraram o mosh do plano secundário dos documentários de rock e fizeram um trabalho focado justamente nesta “dança agressiva”. Confira a entrevista com os autores e assista o documentário no final da página




Como surgiu a ideia de fazer um vídeo sobre mosh? Foi o projeto que fez ir até as bandas ou foi a oportunidade dos eventos que levou às filmagens?


Ramon: Desde que cheguei a Viçosa em 2012 que trago comigo o interesse por estudar a música pesada, especialmente o metal. A oportunidade surgiu em 2013. Na época estava cursando a disciplina antropologia contemporânea, ministrada pelo antropólogo e professor do Departamento de Ciências Sociais-UFV, Marcelo Oliveira. Ele deu bastante liberdade pra gente poder criar e o que aconteceu foi que – junto com Bruno Marota, meu amigo e também fã de música pesada – uniu-se o útil ao agradável.


Tínhamos que entregar um trabalho em que pesquisássemos algum tema a nossa escolha usando para a reflexão as teorias que estávamos estudando na disciplina. Então, inspirados nos trabalhos do antropólogo inglês San Dunn (que já produziu excelentes documentários sobre a cultura do heavy metal como A Headbanger’s Journey e Global Metal), resolvemos fazer uma pesquisa sobre os moshs, um tema que ainda foi pouco abordado quando se fala de pesquisas sobre música pesada. Sobre as filmagens, foi aquilo que disse, unimos o útil ao agradável: aproveitamos que já íamos ao festival, mandamos mensagem para o organizador dizendo do trabalho, e ele nos deu acesso irrestrito aos bastidores e às bandas. Foi chegar lá, ligar a câmera e conversar com as bandas.




Onde vocês fizeram as entrevistas pro documentário? 


Bruno: As entrevistas deste trabalho foram realizadas apenas no evento Tribus Festival, no dia 10 de agosto de 2013 na cidade de Carangola/MG. Inicialmente desejávamos colher o máximo de entrevistas em todos os eventos que foram realizados na região naquele ano, mas por conflitos de agenda não foi possível ser feito.
Ramon Teixeira: Como Bruno disse, a proposta era fazer um trabalho científico mais extenso, na verdade um trabalho escrito, e as entrevistas em nosso planejamento seriam feitas em mais eventos da região e seriam nosso principal material de campo. Como não conseguimos realizar mais os rolês em outros festivais daquele ano por questões de agenda e recurso, a gente resolveu aproveitar o que tínhamos em mãos e criar alguma coisa. Daí no início de 2014, tudo de forma bem amadora e independente, escrevemos o roteiro, editamos as filmagens e lançamos o vídeo que está no Youtube.

Dá pra afirmar que existe um código de conduta em relação ao mosh ou isso é mito? Existem limites na violência exercida ou é algo que só está presente no discurso? 


Bruno: É plenamente correto dizer que existe uma conduta muito bem trabalhada dentro do mosh, tendo até diferentes níveis de comportamento dependendo do “tipo” de mosh. A intensidade da música gera o evento, mas as trocas de golpes e o choque entre indivíduos não geram – pelo menos não propositalmente – uma agressão física com fim de lesar os demais participantes. A dinâmica necessita ser padronizada, acompanhar o ritmo da música e caso um participante caia ou acabe se machucando, naturalmente a roda é interrompida e só se restabelece quando for possível retornar esse padrão, faz-se justo conceber então que o limite de violência é necessário para um bom funcionamento do mosh.
Ramon: Bruno colocou muito bem. Inclusive no vídeo que fizemos, buscamos abordar essa situação, tentando mostrar as diferentes formas de mosh motivadas pelos diferentes sub-gêneros da música pesada que vimos no Tribus, e até tem uma cena no vídeo que mostra a solidariedade dos presentes que ajudam a se levantar um participante que cai durante o show da banda SCROTINHOS.




Se pudesse conhecer a cena de outras regiões do país, pensa em levar a câmara pra continuar a documentar?


Ramon: Na verdade sim. Essa era a intenção, pois, o interesse pelos moshs está na minha cabeça desde o estranhamento ao observar o primeiro mosh de minha vida no show do Sepultura em Vitória em 2009; esse interesse foi se intensificando a partir do momento que passei a participar dos moshs em vários shows, sobretudo os do circuito underground e o ápice veio depois do Rock in Rio de 2011, ano em que participei do maior wall of death da minha vida comandado pelo vocalista Marcelo Pompeu no memorável show do Korzus (inclusive é a cena que abre o Mosh: um conflito estruturante). Toda essa trajetória é que fez acender a ideia de fazer um rolê em vários festivais undergrounds e mainstream em várias cidades, a princípio da região sudeste, e documentar cenas de moshs e opiniões de bandas e fãs sobre a prática, mas por falta de recurso e tempo o projeto não se concretizou. Se eu tivesse tempo, grana e uma câmera toparia continuar o trabalho.




No punk rock temos o pogo, que é mais cadenciado e mais lento que no metal, por seguir a batida da bateria, mas no hardcore a movimentação já triplica. E no metal? Não são todos os estilos que se encontra facilmente a roda de mosh né? Em quais gêneros do metal se encontram os moshs mais agressivos?

Bruno: Cada gênero do metal tem características muito próprias e diferentes gêneros produzem diferentes formas de se fazer o mosh pit. Não necessariamente a música de alta frequência produzirá um mosh de intensidade proporcional a seu valor de bpm (batimentos por minuto), vide gêneros como Ambience Black Metal, Funeral Doom, DSBM que tocam um metal muitas vezes rápido, mas que não proporcionam um bom suporte para o mosh. Mas gêneros como Death Metal, Thrash Metal, Goregrind, Metalcore, Nu Metal, entre outros, possuem bandas que criam suas músicas também com a intenção de produzir os mosh pits mais agressivos possíveis.



Por que você considera o mosh como estruturante? Como seria isso?


Ramon: O heavy metal é uma cultura incompreendida por muitos, exatamente porque ela cobra um envolvimento que nem todo tipo de música cobra. Como disse Tom Warrior (HELLHAMMER, CELTIC FROST e TRIPTYKON), “não importa o quão baixo seja o nível técnico de parte da música pesada – e em muitos casos é baixo mesmo”, ele diz, “é quase impossível tocar de maneira convincente para o público se o cara não vive, respira e entende isso, se não está enraizado em seu próprio sangue. Pois a música pesada reside nos instintos primitivos – nas vísceras –; é difícil para um cara de fora manejar isso mental e fisicamente, não interessa quanto talento ou vontade ele tenha”. Pois bem, considerando então o metal como um sistema cultural, sua questão tem a ver com a terceira pergunta que você fez aqui, pois se tratando de um intento de pesquisa em antropologia, foi a pergunta “Como pode uma ‘dança’ tão violenta possuir regras?” que nos levou a escolher o tema mosh pits. Queríamos exatamente entender a lógica de funcionamento dos moshs a partir dos discursos dos “nativos” dessa prática, pois nós – também nativos, porque ambos apreciamos entrar nos moshs em shows que frequentamos – tínhamos uma hipótese, qual seja: o mosh pit pode ser entendido, fazendo uso dos conceitos do antropólogo inglês Victor Turner, como um ritual de passagem liminar e que gera um estado de communitas entre os participantes.

Isto é, como ritual, possui regras e interditos (o que se pode ou não fazer), exige uma performance (que só se aprende na prática, moshando) e socializa para quem participa (e para quem observa) um imaginário marginal, violento e visceral a que está ligado este tipo de música. É liminar, pois todos os seus participantes encontram-se destituídos de suas posições sociais anteriores, ocupando um entre-lugar indefinido no qual não é possível categorizá-los plenamente, ou seja, não importa sua classe social, cor, profissão, se gosta de Slayer ou de Cannibal Corpse, se você está na roda, você vive o risco como todo mundo, vive o estado liminar próprio dessa “violência amistosa”, isto é, ao mesmo tempo um espaço de confraternização entre fãs e um espaço de expurgo dos demônios cotidianos.


Todo esse ritual gera o estado de communitas, ou seja, vínculos entre indivíduos que agora estão em mesma situação. Esses vínculos criados durante o mosh, podem em alguns casos transformar os indivíduos que participam, tornando-os headbangers autênticos que levam a violência própria da música ao pé da letra, deixando seus corpos agir livremente segundo o ritmo. Outro fato é que após o mosh, os laços de confiança entre aqueles que participam podem aumentar consideravelmente. Enfim, o que quisemos dizer é que o mosh é um conflito (antiestrutura) que gera novos vínculos entre os participantes e os reposiciona, reintegra-os na cultura metal (estrutura). Esses apontamentos são uma hipótese e necessitam de maior aprofundamento com mais trabalhos de campo, entrevistas e observação-participante para ver se se confirma ou não essa nossa percepção. O vídeo foi só um ensaio que apresenta algumas reflexões sobre o tema, mas mais trabalho será necessário para desvendar os significados desse mundo que é o mosh.




Pra quem ainda não assistiu: