Nutro já há alguns anos uma leitura, parcialmente teorizada num curso sobre a história da cultura metaleira que ministrei na PUCRS, de que os verdadeiros “pais” do Metal não foram nem o Black Sabbath, nem o Deep Purple, muito menos o Led Zeppelin, mas sim a série de choques econômicos da década de 1970 (as crises do petróleo) que levaram as sociedades ricas do norte global a uma crise arrastada e de solução difícil. O processo a que me refiro começou pra valer em 1973 e desencadeou um cataclisma econômico de dimensões globais (o fim do “milagre econômico” dos militares brasileiros começa aí), que apenas se solucionou com o desmantelamento do “estado de bem-estar social” nos países do norte e culminou numa virada de página histórica no início da década de 1980, quando o pensamento econômico prevalente desde o New Deal (1933) de Roosevelt (mais intervencionista e assistencial) foi suplantado pelo neoliberalismo de Margareth Thatcher, na Inglaterra, e Ronald Reagan, nos Estados Unidos. Durante a década de 1970, assim, o que houve foi uma lenta agonia, marcando a derrocada da época que garantira o otimismo hippie, e acompanhada de um estado de indefinição apocalíptica, facilmente verificável na produção cultural do período[1]. É justamente aí, no intervalo entre o fim do coletivismo da Era de Aquário e o início de uma sociedade mais voltada para a competição e o hedonismo individualista, que começa a fermentar o caldo social que daria substrato para o surgimento da cultura metaleira. A década de 1970 foi, em outras palavras, uma década de “transição”.

Metal e punk irmãos

Não é difícil, como afirmei, perceber o curso dessas transformações na própria forma com que o rock, o estilo musical do momento, foi adquirindo tons cada vez mais sombrios, rompendo a efusividade colorida, por vezes folk, do Verão do Amor, e guinando para uma jornada bem mais invernal, noturna e urbana, oras ensimesmada e escapista (o prog rock do início da década), outras explicitamente política e revoltada (o punk)[2], aqui e ali carregada de referências a narrativas de horror (shock rock, Alice Cooper) ou ao ocultismo (Led Zeppelin) apocalíptico (Black Sabbath), apostando em um ethos de força e potência em que veículos motorizados são como extensões do corpo humano (Purple, Judas, Motorhead), nas perversões dos passatempos eróticos e do submundo noturno de drogas, jogos e prostituição, na oposição glamour-sarjeta (que ganharia forma definitiva nos anos 1980), no esvaziamento da retórica humanista e revolucionária do fim da década de 1960 para uma celebração do decadente e do superficial (glam rock), enfim: a lista é longa, mas ilustrativa de uma ideia simples: o sonho acabou, quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou[3].

Ao mesmo tempo, é justamente na década de 1970 que o rock se torna sinônimo decisivo de música de massas, não mais apenas de contracultura, lotando estádios em megashows e explorando exaustivamente a ideia do superstar[4] – que os punks buscaram combater e os glams usufruir de maneira autoconsciente. Não creio que seja exagero afirmar que a primeira banda “totalmente metaleira” – os Metal Gods por excelência, Judas Priest – surgiu de certa forma da conjugação dessas duas éticas, a negação punk e a afirmação glam, mas isso, bem como minha opção por nomear o Judas como a primeira banda “totalmente metaleira”, é matéria para outro artigo. O que interessa, por hora, é focar na afirmação que arrisquei algumas linhas acima: a crise do Ocidente ao longo da década de 1970 teria gerado a atmosfera pesadelesca e sombria de onde surgiriam, do seio das classes trabalhadoras, duas subculturas irmãs, e que estão entre as mais longevas e amplas do mundo contemporâneo: o Heavy Metal e o Punk.

Sei o risco que corro ao afirmar que o metal e o punk são culturas irmãs, mas quero dobrar a aposta, dizendo mais: punk e metal são irmãos gêmeos, embora bivitelinos. São filhos do mesmo útero da constatação do “fim do futuro” para as classes trabalhadoras do mundo anglófono nos anos do estertor do estado de bem-estar social. No entanto, antes que me acusem, devo distingui-las, se não pelas diversas características que as separam (e seria exaustivo elencar), especialmente pelo fato de que o apocalipse, ou o “fim do futuro”, possui, para ambas, dimensões bastante distintas: “secular”, no caso do punk, “milenar” para o metal.

Os signos do “no futurepunk são associados a figuras do mundo material, social, cotidiano: a rainha, o capitalismo, o fascismo, a escola, a polícia e demais instituições do poder mundano, endereçados frequentemente em um tom sarcástico, de tiração de onda, como é o caso especial dos Sex Pistols. Contra esse no future, resta-lhes sair quebrando tudo. Já a cultura metaleira vive o apocalipse de maneira muito mais espiritual, sobrenatural, como uma maldição inescapável, que se entranha em todos nós, uma doença maligna que se espalha pelas mãos de entidades demoníacas e em relação à qual só nos resta sofrer. O punk aponta o fim e esperneia contra ele; o metal integra-o, vive-o e se deixa contagiar por ele: é uma luta na qual não devemos tomar parte, onde o mal, como uma força espiritual – e não como dimensões político-sociais – quase sempre vence. Vejam o que disse o grande Lester Bangs em texto de 1978 para a revista Hit Parader:

A música do Heavy Metal, em sua mais fina flor, tinha uma mensagem óbvia e central: não há esperança. O que quer que você faça, não pode ganhar. O mundo é governado por porcos da guerra (“war pigs”) que nos transformaram em cães humanos e você deve aceitar o seu destino da forma mais ignominiosa possível. Foi, ao menos nos EUA, meio que o resíduo do Vietnam e tudo o mais, mas era realmente um sentimento mundial e, nesse sentido, as “Cassandras” bombásticas do Heavy Metal diferiam dos punks, que podem até gritar sobre a falta de futuro, mas, pelo menos, estão determinados a sair por aí chutando e se debatendo. Os malucos do Metal só queriam esquecer a porra toda, cara; eles eram, resumidamente, passivos.[5]

Para entendermos do que está falando, cabe esclarecer primeiro que “Cassandra” é uma personagem da literatura grega, que profetizou a guerra de Troia, mas ninguém lhe deu ouvidos e foi considerada louca. O simbolismo dela aqui é o de ser uma profetisa incompreendida do apocalipse, e Bangs foi muito feliz ao usar essa analogia porque, se pararmos para pensar, o “arquétipo[6]” da Cassandra diz muito sobre uma parte significativa do ethos metaleiro ainda hoje: aquelas pessoas que estão o tempo todo cantando e falando da catástrofe, do apocalipse, da luta entre o bem e o mal, mas que não são levados a sério por ninguém. Ainda hoje, décadas depois, o Metal segue como uma subcultura marginal.

Cassandra

Mas o traço reconhecido por Bangs da época “pré-metaleira” do Black Sabbath e assemelhados prevaleceu como referência predominante da poética do Metal durante a época de sua formação nos anos 1980 e expansão nos 1990 e 2000. Uma das consequências mais interessantes disso é que, mesmo quando o universo da sociedade e política é integrado ao repertório das bandas (penso especialmente no thrash da Bay Area, uma cena que, aliás, nasceu nas mesmas ruas e pubs que parte significativa do hardcore punk da Califórnia, e com quem os metaleiros mantiveram trocas bastante frutíferas) – enfim, mesmo quando o universo da sociedade e política é incorporado, geralmente possui amplitude geopolítica e/ou conspiratória, como se o mundo do homem fosse mero joguete de forças muito maiores (políticos sobre-humanos, sociedades secretas, aliens etc.), transcendentais e mais poderosas, que nos controlam qual marionetes, bem como controlam o rumo de tudo, e usam-nos como recursos para atingir os seus fins de poder. Exemplos clássicos dessa geração são a própria ideia de Master of Puppets (“pulling your strings”) e os álbuns oitentistas do Megadeth.

Mas também fora da Bay Area e da vivência próxima com o hardcore punk podemos encontrar um exemplo vívido da diferença entre os dois no future’s, punk e metaleiro de suas fases iniciais. No primeiro disco do Slayer (uma banda de Los Angeles, portanto mais próxima geograficamente da cena glam-metal-hair-rock que do hardcore punk de São Franciso), uma faixa em especial chamou minha atenção numa audição descompromissada hoje. Nunca tinha dado muita atenção aos versos que Tom Araya canta em Fight till death, mas agora espocou-me à mente o valor comparativo que traz em relação ao clássico antêmico God save the Queen, dos Sex Pistols. Vejamos:

God Save the Queen (Sex Pistols, 1977)

Fight till death (Slayer, 1983)

Oh when there’s no future
How can there be sin
We’re the flowers
In the dustbin
We’re the poison
In your human machine
We’re the future
Your future(…)No future
No future
No future for you(no future for me)
Senseless death of all mankind overtakes
Armored assassins destroy at will your escape
Children of sorrow are trampled into the grave
There is no future no fucking world to be saved.Gods of steel unleash their destruction on man
Reign of death what is the final command
Scepters of hate are dropped upon the Earth
Clouds of terror destroy all hope of rebirth

O contraste é óbvio: ao mesmo tempo em que ambas propagam a percepção do “fim do futuro”, a canção dos Sex Pistols recorre a palavras como “fascismo”, “dinheiro”, “história”, “líder decorativo” (figurehead) e “crime” ao longo de sua extensão para situar a audição no cenário de uma Inglaterra terrena, moralmente corrompida, decadente – e o fato de ser uma paródia do hino do Reino Unido apenas realça esses aspectos. Juntamente com a ideia de “human machine” (“máquina humana”), reforça-se a percepção de que o contexto da letra é o da própria sociedade humana, e que há um responsável humano por ele: “your (da Rainha, representando a sociedade inglesa como um todo) human machine”. Obviamente, para não esquecer de ser punk, os Pistols recomendam que o ouvinte não aceite tranquilamente esse estado de coisas (“don’t be told what you want / don’t be told what you need”), sem porém convocar um questionamento militante, organizado, para disputar contra os poderosos. Trata-se, na verdade, de viver o fim do futuro até as suas últimas consequências: “se não há futuro, como pode haver pecado”? O punk será o “rejeito” que envenena a “máquina humana”, as “flores no lixo”: sair esperneando e quebrando tudo sem um objetivo específico.

Sex Pistols God save the Queen

Por outro lado, olhando para a canção do Slayer, deparamo-nos com uma terminologia mais afeita ao supranatural. “Reino da morte”, por exemplo, remete a outra dimensão, a do “pós-vida”, do “além”, regida por “deuses de aço” com “cetros de ódio” que conjuram “nuvens de terror” sobre este mundo aqui, o “natural”, intersectando-os. É uma visão literária bem menos mundana, carregada nas tintas, como saída direto do Livro do Apocalipse. A destruição de tudo, o “fim do futuro”, assim, parte de outra dimensão em direção a nós, indefesos.

Show no mercy
show no mercy (1983)

Se parecer a alguém que estou forçando demais a leitura do Slayer, torcendo-a de formas estranhas para revelar algo que não necessariamente está claro ali, peço aos leitores (especialmente aos mais jovens) considerarem que, quando foi lançada, na chamada “era do álbum” do consumo de música (meados dos 1960 aos 2000), uma faixa musical nunca significava sozinha, mas em relação a todos os outros signos que compunham um disco (álbum), desde as imagens da capa até as outras faixas na mesma gravação. Nesse sentido, as intenções ocultistas da capa de Show no mercy, o álbum de que estamos falando, não são difíceis de verificar, nem é necessário que sejam descritas: uma googlada basta. Quanto ao teor de suas outras canções, limito-me, até porque já abuso do espaço que me foi concedido, a reproduzir um trecho de uma delas, Face the Slayer, onde se pode verificar de maneira ainda mais sugestiva a percepção dessa força fatal e “onipresente”, que está em qualquer lado para o qual nos virarmos, que é forte demais para que lutemos contra ela, que nos faz de joguetes indefesos na sua “noite de condenação” e cuja principal predicação é a do “terror eterno”:

Your running through the endless maze, you turn and I’ll be there
A force too strong for you to fight, I’ll see your end tonight
You think you can destroy me? You’d better think again
I am eternal terror, my quest will never end
I’ll trap you in the pentagram and seal your battered tomb
Your life is just another game for Satan’s night of doom


Notas:

[1] Dentre tantos outros, julgo o caso de Catch me now I’m falling, dos Kinks, exemplar.

[2] Mas não só. É também notável que uma banda prog do tamanho do Pink Floyd tenha lançado seus dois discos mais sombrios e politizados justamente na passagem da década de 1970 para a de 1980: Animals e The Wall.

[3] Não fui eu quem disse, foi Gilberto Gil.

[4] Claro, já havia acontecido antes com os Beatles e alguns outros.

[5] Há, porém, um problema neste excerto de Lester Bangs: reparem no seu uso dos tempos verbais, em 1978: ele fala do punk no tempo presente, mas do metal no passado, como se o punk fosse uma novidade (de certa forma era) e o metal estivesse extinto. É uma questão de terminologia de época, que mudou radicalmente durante a década de 1980, quando o circuito da cultura metaleira passou realmente a existir. Bangs, quando fala em Heavy Metal, está na verdade referindo-se a um conceito anterior, de conotações pejorativas, que engloba o som do Black Sabbath e seus semelhantes num estilo de rock pessimista, estranho ao momento hippie, e que também era chamado de Downer Rock ou Heavy Metal Rock. Eu, por motivos que também posso tentar esclarecer em textos futuros, prefiro classificá-los, em relação à cultura metaleira, como “proto-metal”, e em relação à música popular moderna no geral a ideia de Heavy Metal Rock me agrada bastante.

[6] Nunca estou 100% seguro ao usar este termo.