Nesta minha ainda curta jornada neste mundo jornalístico musical, me deparei com a seguinte situação. Olhando nas poucas linhas do meu perfil (este que fica logo abaixo no rodapé de cada texto aqui do site), bati os olhos na seguinte frase: “… fanático por biografias…”. E nesta hora, me dei conta de que nestas mais de 30 resenhas escritas aqui para O Subsolo, nenhuma delas fora a respeito de uma biografia. Mas isso termina hoje…
E nada melhor para dar este pontapé inicial a este universo biográfico, do que dissertar a respeito sobre a minha mais recente leitura.
João Luiz Woerdenbag Filho, conhecido pela alcunha de Lobão, um dos inúmeros apelidos que ganhara durante a infância no colégio, gostando você ou não, seja pela posição política que o músico adotou nos últimos anos, ou simplesmente por não apreciar a obra, é sim, uma das principais e importantes figuras do panteão do Rock brasileiro.
Confesso que nunca pensei que um dia a obra deste carioca iria me causar curiosidade a ponto de me fazer ir atrás dela e realmente gostar dos 12 trabalhos de estúdio que permeiam a discografia deste multi instrumentista. Entretanto, sem saber, eu já havia entrado em contato com as músicas de Lobão, ao conhecer a obra de Cazuza. Músicas como Mal Nenhum e Vida Louca Vida, canções que ficaram eternizadas na voz do antigo frontman do Barão Vermelho, são de autoria de Lobão, assim como a clássica Me Chama (a 47ª maior música brasileira segundo a revista Rolling Stone) e Noite e Dia, lançadas primeiramente pela cantora Marina Lima, cujas baterias da banda dela eram comandadas pelo ainda jovem lobo.
Posso afirmar sem receios, que a história de Lobão faz jus ao título de um dos maiores hits da carreira, em uma vida realmente regada por tragédias, injustiças, momentos de glória, fossa e muitos, mas muitos momentos hilários dignos de um humor ácido característico da personalidade do cantor. O livro já acerta logo de cara, quando decide optar por utilizar de forma fidedigna todos os maneirismos, gírias e todos os trejeitos da forma que Lobão usa para se expressar. Este ponto é tão forte, que o leitor consegue facilmente ouvir o próprio personagem principal contando a própria história, como se você estivesse sentado diante dele ouvindo pessoalmente cada relato.
Outro ponto positivo nesta leitura, é que diferente de 90% das biografias já lançadas no mercado, aqui não existe censura ou receio de expor os acontecimentos mais absurdos, os podres e até mesmo os momentos mais constrangedores. Diferentemente do que fazem artistas como Caetano Veloso e o tal “rei” Roberto Carlos, que já chegaram a proibir (ou ao menos tentaram) a veiculação de obras biográficas a respeito deles. Atitudes essas que são juridicamente aceitáveis, porém, é muito questionável o motivo de alguém como Caetano, que sofreu com a censura, a ponto de ser exilado, utilizar-se de algo que em décadas atrás prejudicara não só a ele, como uma infinidade de artistas tão relevantes para a nossa música…
Como já mencionado anteriormente, Lobão foi pioneiro em diversos campos, sejam eles positivos ou negativos. Por exemplo, ele fora uma das primeiras crianças no Brasil a se curar da Nefrose, uma doença que faz com que o corpo, através da urina, excrete em excesso a proteína adquirida, resultando em inchaços por todo o corpo.
E fora justamente essa condição, que o assolou até os 12 anos de idade, que fez com que o jovem João Luiz, que na época recebeu a alcunha de Xurupito (uma das inúmeras histórias hilárias da biografia), fosse alvo da superproteção materna, que o privaria de muitas das vivências sadias que uma criança precisa para o próprio desenvolvimento social.
De família numerosa, foi através dos primos, que Lobão teve os primeiros contatos com o Rock N’ Roll e o instrumento que o consagraria, ou pelo menos, o iniciaria como músico, a bateria. Profissão abominada pelos pais, que visavam um futuro de funcionalismo público para o filho. De forma autodidata, ele conseguiu evoluir atraindo os olhares da avó, que seria a maior apoiadora e financiadora das desventuras musicais do neto.
A partir disso, os primeiros protótipos de banda foram surgindo, entre elas a impagável Nádegas Devagar de curtíssimo tempo de duração. Foi com muita insistência de um amigo, que o jovem baterista foi a um teste para um grupo de Rock Progressivo formado por outros jovens que se tornariam gigantes do Pop nacional, como Lulu Santos e Ritchie. Tocando um samba para provocar os tais roqueiros, aos 17 anos Lobão fora efetivado ao Vímana, sendo o membro mais novo da banda. Após muita insistência para que o adolescente saísse em turnê com o grupo, a mãe de João confiou a tutela do garoto a Ritchie, que segundo ela, era a única pessoa que parecia demonstrar bom caráter. A partir disso ambos construíram uma amizade sólida, com Lobão gravando futuramente, a bateria do primeiro disco solo de Ritchie, o mega sucesso de vendas Voo de Coração (1983).
Após o Vímana tomar um verdadeiro “chapéu” do ex-tecladista do Yes, Patrick Moraz, a banda em pouco tempo se dissolveu, tendo lançado oficialmente apenas um compacto intitulado Zebra/Masquerade (1977).
No período em que ficou órfão de banda, Lobão prestou serviços baterísticos para artistas como Luiz Melodia, Walter Franco, a já citada Marina Lima e a Gang 90 e as Absurdettes, onde conheceu o saudoso Júlio Barroso, que viria se tornar um grande amigo e um dos inúmeros parceiros de composição. Ainda na Gang, ele conheceria a holandesa Alice Pink Pank, futura companheira de banda com Os Ronaldos e esposa.
Em parceria com Evandro Mesquita e Ricardo Barreto, Lobão foi o responsável por dar nome, fundar e gravar o primeiro disco da Blitz, um verdadeiro fenômeno Pop dos anos 80. Entretanto, entre esse meio tempo, o primeiro disco solo de Lobão, Cena de Cinema fora gravado. Este disco é considerado pelo cantor como um disco composto por amigos, uma vez que, muitos parceiros da trajetória musical participaram, como o próprio Lulu Santos, Marina Lima e Ritchie.
A EMI, gravadora que estava prestes assinar com a Blitz, ao saber da existência deste trabalho, exigiu que Lobão destruísse as fitas master como condição para fechar o contrato com o grupo. E então esse seria o primeiro de muitos embates que ele travaria com os engravatados da indústria fonográfica.
Relutante em acabar com um trabalho realizado com o carinho e apoio de grandes amigos e já insatisfeito com os rumos estéticos que a Blitz estava tomando, Lobão decidiu romper com o grupo, mas não antes de aparecer com eles na capa da revista Isto É, fato este, que muito o ajudou a conseguir uma contratação com a RCA. Gravadora que lhe renderia uma verdadeira dor de cabeça, mas que seria a responsável por lançar os seis primeiros trabalhos da discografia solo.
Após isso inúmeras histórias são contadas no decorrer do livro, como as prisões, a relação de amizade com Elza Soares e a bateria da mangueira, o esforço homérico para gravar o disco Sob o Sol de Parador, a morte dos país, o nascimento da filha, a empreitada no mundo da música independente e a guerra travada, com o único apoio da cantora Beth Carvalho, contra a Associação Brasileira de Produtores de Discos para que houvesse um projeto de lei que visasse a transparência no número de vendagem de discos (recurso este que muitos artistas se beneficiaram e ainda usufruem até hoje).
Mas precisei entregar da forma mais resumida que pude essa introdução, para lhe contextualizar. Outro ponto positivo para o livro, é a utilização de matérias de jornais da época que ajuda o leitor a compreender melhor como a mídia era parcial e tendenciosa em relação a tudo que acontecia com o artista, o levando durante muito tempo a assumir uma postura combativa em relação à imprensa.
Consigo de fato, compreender aqueles que nutrem total ojeriza pela figura de Lobão, devido aos acontecimentos dos últimos anos, quando o músico apoiou o levante conservador que acabou elegendo o facínora que hoje disputa a reeleição. Mas essa não foi a primeira e com certeza não será a última vez que o velho lobo causará a ira de muitas pessoas.
Mas caro amigo, Lobão por mais incoerente que lhe possa parecer, sempre defendeu ferrenhamente o que em determinadas épocas acreditava, sem medo de admitir quando errava e mudar de opinião (coisa rara hoje em dia) atacando de forma brutal aquilo que um dia concordava. Não à toa, ele fora banido de toda e qualquer participação em programas globais, após de forma ilegal e ao vivo, declarar de forma pra lá de excêntrica, apoio ao então candidato à presidência Lula no domingão do Faustão em 1989. Sim meus amigos, um dia Lobão também fez o “L”.
As razões pelas quais ele apoiou o atual governo, e os descontentamentos que o levaram a abandoná-lo estão na sequência desta biografia, intitulada 60 Anos A Mil lançada em 2020. Mas sinceramente, essa parte pouco me importa. Não condeno aqueles que em 2018 votaram em Bolsonaro, mas sim, aqueles que perante as inúmeras barbaridades cometidas pelo mesmo, ainda o seguem cega e bovinamente. Hoje, Lobão se considera uma pessoa apolítica (o que para este que vos escreve, perante o atual momento, é uma decisão sensata a se tomar), e atualmente a carreira dele vem rendendo ótimos frutos, como a turnê O Magma do Rock e o disco de regravações Canções de Quarentena, onde ele presta homenagem a todos os artistas que permeiam o vasto panteão de influências.
Por essas e outras, recomendo fortemente a leitura de 50 Anos A Mil para desconstruir essa visão, que em partes, o músico ajudou sim a construir sobre a própria persona, mas também é um livro recheado de boas histórias sobre os anos oitenta que poucos apareceram para desmenti-las ou mesmo corrigi-las. A trajetória de João Luiz faz jus aos estereótipos de Sexo Drogas e Rock N’ Roll, trazendo o relato divertido dessas histórias agridoces de um dos poucos coadjuvantes do Rock Nacional dos anos 80 que nunca quis ser, ou se tornou um bom moço…