Para um garoto na faixa dos 15 anos, que majoritariamente, tinha Angra, Shaman, Helloween, rolando naquele icônico aparelho celular da guitarrinha (quem aí teve um desses também? O som era alto pra caramba!) no caminho para a escola, o Slayer era tido como o supramusso mor do satanismo no Heavy Metal.

Sério, ouvir Seasons in The Abyss, South of Heaven e Rainning Blood para a garotada aqui do interior, era quase como estar ouvindo um ritual maligno, a ponto de muitas vezes, sentir-se mal com tamanha malignidade que emanava dos riffs e das capas dos discos do quarteto da Bay Area.

Pois bem meus amigos, tempos mudam, gostos idem, cabeças amadurecem, e com  meu apreço pela música extrema, o Slayer  se tornou uma das bandas que fiz questão de revisitar. Sabe quando você depois de muito tempo decide assistir aquele filme de terror, que na infância lhe tirava o sono e passa a gostar muito dele?

Assim fora a minha relação com Slayer e ela continua até hoje.

Considero o grupo como a melhor banda do chamado Big 4 (formado junto do Metallica, Anthrax e Megadeth), pois fora a única que, ao meu ver, sempre manteve a fórmula e o espirito original, mesmo tendo flertado com o  Nu Metal nos anos 90 com o Diabolus em Musica. Você não viu o Slayer, por exemplo, criando uma trilogia de baladas, ou mesmo flertando com a música country e a poesia concreta de Lou Reed

Colecionador que sou, fui atrás  de obter todos os cds de estúdio da banda.  E nunca vou me esquecer de quando vi o God Hates Us All,um dos últimos álbuns que faltava para completar a coleção, no porta luvas do carro, do Guilherme Melo (o Garça), durante as sessões de gravação do Prophecies of Plague da Sacramentia.

Ao comentar com ele que estava colecionando a banda, e que o trabalho que estava nas minhas mãos naquele momento tinha a importância que mencionei acima, ouvi um sonoro: “Ah é? Pega esse pra você então.”

Cara, essa atitude inesperada foi algo tão espontâneo que o meu sentimento de gratidão  ecoa, e  sempre ecoará, nessa nossa história de amizade.

Quando o Slayer pisou no palco, no que até então seria o último show da banda, em 30 de novembro em 2019 no Los Angeles Forum para logo em seguida encerrar uma carreira de 38 anos, considero que naquele momento, um buraco gigantesco se abrira no cenário do Heavy Metal mundial. Buraco este, impossível de ser preenchido por outra banda…

Com King inconformado pelo fim do grupo que fundara com Jeff Hanneman em 1981, o trabalho do Slayer, ou pelo menos a aura da banda, teria continuidade pelas mãos do guitarrista que a muito já tomava as rédeas no que dizia respeito ao processo e posicionamento criativo dos últimos discos lançados.

Ao lado do companheiro de longa data Paul Bostaph, o baixista Kyle Sanders, o vocalista do Death Angel (escolha acertadíssima) Mark Osegueda e o guitarrista solo Phil Demmel, o time estava pronto para adentrar ao estúdio e registrar o debut da nova banda, que por motivos obvios, fora batizada de Kerry King.

E não fosse a pandemia, From Hell I Rise teria sido lançado ainda em 2020. Mas quem sabe o período de maturação não tenha feito bem ao disco que disseco nos parágrafos a seguir.

Diablo segue os moldes introdutórios do longíquo Repentless (2015). Vale ressaltar de antemão, que muito do que virá no disco, trará esse retrogosto do último registro do Slayer, tendo em vista que o material foi composto por sobras das sessões de gravação do álbum. Não é lá a introdução mais cativante, como em Delusions of Savior, mas serve como uma boa climatização preparando o ouvinte para o que se avizinha…

Where I Reign é uma belíssima e profana apresentação do disco, trazendo todo o “carinho” inerente que King sempre nutriu pelo cristianismo. E ao acompanhar a faixa junto com a letra, tive um insight, como se os vocais fossem proferidos por uma pessoa prestes a ser queimada na fogueira nos tempos da inquisição, fazendo seus últimos votos, jurando um vingativo retorno. Creio que se o disco se iniciasse sem a firula de uma introdução, já introduzindo essa bela porrada na cara do ouvinte, seria muito melhor!

Proporcionando um leve momento de respiro, a introdução ritmica de Residue logo é rompida pelo primitivo e lascerante grito do vocalista, dando lugar a uma faixa galopante e furiosa, que além de servir como um segundo single do disco, rendeu um flamejante videoclipe.

Idle Hands me pegou logo na primeira audição, fazendo-me abraçar,comprar a ideia do trabalho e o aguardá-lo com certo entuasiamo. Da para perceber o motivo dessa ser a faixa selecionada como primeiro amostra do álbum. Ela carrega toda a essência da antiga banda de King, com riffs cativantes, breakdowns que fazem o pescoço sacolejar instantaneamente, e os vocais de Osegueda que não deixam qualquer saudade de Tom Araya. E sinceramente, foi um alívio enorme poder confirmar que o enfadonho Phil Anselmo não estava à frente do projeto, como os rumores apontavam.

Na sequência Trophies of The Tyrant é um retrato fidedigno da sociedade atual, onde as minorias são oprimidas por um inimigo que age na surdina, por de trás das telas,  espalhando ódio e intolerância, muitas vezes utilizando-se do nome de deus. Todo o sofrimento causado às vítimas, ao final, são os troféus obtidos pelos tiranos. A faixa também será tirânica para os instrumentistas, e confesso estar curioso para presenciar a mudança brusca de andamento ao vivo (inclusive a estreia nos palco ocorreu no dia 07 de maio em Chicago).

Crucifixation agarra o ouvinte pelas orelhas para em seguida sufocá-lo em uma banheira de água benta, escancarando todos os crimes cometidos em nome da fé no decorrer das eras culminando neste verdadeiro hino ateísta. De verdade, o pré refrão dessa faixa soa como verdadeiros socos desferidos um após o outro, sem piedade alguma em nossas faces coradas.

Após sermos batizados à nua e crua realidade da faixa anterior, Tension funciona como um novo despertar, uma melodia branda, lúgubre e macabra que logo se torna em algo pesado, lento, apoteótico e apocalíptico, como se pudéssemos, ao fechar os olhos, presenciar a chegada do fim dos tempos.

Apesar do nome que me remete a uma música emo, Everything I Hate About You é a faixa mais curta do registro, trazendo todos os mais maléficos desejos de King por um desafeto (que honestamente não devem ser poucos).

O riff de Toxic é ríspido e cativante, com algumas pitadas que remetem as partes mais cadenciadas do clássico Angel of Death, de Reign in Blood (1986).

Quase atuando como uma dobradinha, Two Fists é uma ode ao Punk Rock e talvez a faixa mais “amigável” às massas. Em uma entrevista recente a Loudwire, King afirma que a música seria impossível de ser inserida dentro do contexto do Slayer, por conter frases incoerentes com a proposta do ex-grupo, como “Acho que preciso de outra bebida”. Para evocar todo o sentimento que a faixa provoca, o guitarrista buscou evocar a persona de um vocalista punk dos anos 80.

Rage é mais uma faixa que deveria integrar Repentless, porém, o guitarrista não apreciou a execução, preferindo assim, engavetar a composição, utilizando-a agora neste projeto. É dificil escolher uma pedrada em específico em todo disco que será a responsável pelos mosh pits, mas essa em questão, uma verdadeira espiral de caos,sem sombra de dúvidas é uma fortíssima candidata.

O maligno e lento riff de Shrapnel evoca a malignidade presenciada em outro classico absoluto,Dead Skin Mask,retrantando um indivíduo (que assim como Ed Gein) mata sem escrúpulos,cerimônias ou remorço. Outra belíssima pedrada!

E fechando o disco sem deixar o climar esfriar (se é quem algum momento da audição isso ocorreu) a furiosa From Hell I Rise traz sequência na temática de Where I Reign, com o retorno do eu lírico como a personificação do pecado, pronto para acabar com a religião e tudo o que ela representa.

Lançado oficialmente em 15 de maio de 2024, via Reigning Phoenix Music, From Hell I Rise foi gravado nas imediações do Henson Studios in Los Angeles, tendo a produção assinada por Josh Wilbur, que já trabalhou com bandas como Korn, Triviun e Killer Be Killed. Já a arte da capa ficou à cargo do artista brasileiro Marcelo Vasco (Patria, The Troops of Doom), responsável também pela capa de Repentless, e praticamente todo o material gráfico da última turnê do Slayer.

Muitas pessoas ao tomarem contato com os primeiros lampejos da obra, a criticaram pela similaridade com a sonoridade da antiga banda de Kerry King. Bom, eu sinceramente, não esperava (e pra ser bem honesto nem queria) algo diferente dessa linha, mas encaro essa semelhança como algo extremamente natural, tendo em vista, que o guitarrista dedicou praticamente a carreira toda ao Slayer, construindo ao lado de Araya, Hanemann e Lombardo toda a atmosfera que agora se estende para este novo projeto.

A mixagem não tenta inventar a roda. Tudo soa como um bom disco de Heavy Metal deve soar, trazendo cada elemento sonoro em seu devido lugar, mas ao mesmo tempo, sem perder as características, ou mesmo o peso, que consagrou Kerry King.

Outro fator que merece destaque (não que os outros não mereçam, mas como vocalista que um dia fui, saliento este em questão) são os vocais. Mark Osegueda abraça e interpreta as letras de forma enérgica e magistral, trazendo ainda mais empolgação à audição, resultando em um vocal característico do Thrash Metal, com algumas passagens que beiram a um quase gutural, despertando assim o sentimento de àvidez pelo que se está por vir nas próximas faixas.

Mas se tem algo, que me deu um certo gosto amargo em toda essa espera pelo disco, foi o anuncio da tal volta do Slayer (que não  sou contra, mas também não vou ser hipócrita em admitir, que só irá acontecer porque o cachê oferecido deve ser enorme).

Primeiro por que considero algo deveras estranho, se levarmos em consideração que semanas antes do anuncio, Kerry King atacava veementemente o ex-companheiro de banda, Tom Araya. Segundo, pois considero uma tremenda falta de consideração para com os competentes integrantes da nova banda, que entregaram tudo do bom e do melhor ao projeto. Mas se tratando de uma personalidade como a de King, que nunca poupou esforços para não ser escroto ou desagradável, tal atitude não me surpreende…

Em suma, From Hell I Rise é um excelente sucessor espiritual do legado mastodôntico do Slayer. E assim como os 11 discos da banda que o originou, é uma excelente trilha sonora para os fãs orfãos sedentos por inéditas do grupo. E ainda, é uma boa pedida para trucidar hordas infernais de todas as infinitas maneiras possíveis, durante uma partida do clássico absoluto dos video games, DOOM (se nunca fez isso, lhe proponho o exercício).

King afirma que quatro músicas para um sucessor já estão prontas, então um segundo trabalho não deva tardar a chegar. Mas por hora, ficamos com essa obra prima de um dos gigantes do Thrash Metal.

Tracklist: 
1-Diablo
2-Where I Reign
3-Residue
4-Idle Hands 
5-Trophies Of The Tyrant
6-Crucifixation
7-Tension
8-Everything I Hate About You
9-Toxic
10-Two Fists
11-Rage
12-Shrapnel
13-From Hell I Rise

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.