Ah os mais puritanos vão odiar esse texto. Isso se chegarem a sequer abri-lo. Já disse isso em outros textos, mas repetirei uma vez mais: Se nem de pão vive o homem, quem dirá de sons extremos…

Amiguinho, você pode ser o metalhead mais from hell de todos, mas sempre haverá aquelas músicas mais amenas que vão conquistar a sua cabeça. E ó, segredinho, gostar de outros gêneros musicais, não anula o seu gosto pelo metal. Afinal de contas, você só come um tipo de comida?

Hoje falarei a respeito de um dos álbuns que mais gosto na vida, o primeiríssimo dessa banda que foi um verdadeiro fenômeno tupiniquim. Um grupo que passou pelas nossas terras como um furacão, em tempos onde a liberdade era cerceada por um sanguinário governo militar (que muitos hoje em dia parecem querer apagar da história clamando em distopia pelo retorno).

Ouso mesmo afirmar, que os Secos & Molhados causaram um impacto quase que Beatlemaníaco, sendo apreciado na época por públicos de diferentes faixas etárias e alcançando números estrondosos de vendas de discos.

O grupo foi formado na época pelo jovem português erradicado no Brasil, João Ricardo. Apesar da formação jornalística, a música sempre fora a primeira paixão de João, que já havia tido a oportunidade de tocar com diferentes colegas antes de iniciar o icônico quarteto. E foi durante uma temporada de férias nas praias de Ubatuba, São Paulo, que o fatídico nome surgiu, enquanto ele contemplava a fachada de um modesto Armazém de Secos & Molhados durante um dia chuvoso. Segundo, o próprio, o nome lhe chamou a atenção, pois, ao mesmo tempo em que não significava coisa alguma, se abria para todos os gêneros.

Assim como a maioria em início de carreira, passava por constantes mudanças de formação. Nos primórdios, o grupo se apresentava com João no violão de doze cordas, Fred no Bongô e Antônio Carlos Pitoco. A sonoridade e desempenho do grupo, mesmo que ainda engatinhando para o que o Brasil conheceria em um futuro não tão distante, cativava o público do Kurtisso Negro, casa situada no bairro do Bexiga, em São Paulo, onde tocavam constantemente. Dentre as inúmeras pessoas que frequentavam o local ávidas para conhecer a banda, estava a cantora e compositora Heloísa Borges da Fonseca, a Luhli, que mais tarde comporia grandes sucessos presentes no disco de estreia dos Secos & Molhados, como O Vira e Fala.

Apesar da boa inciativa, Fred e Pitoco abandonam o barco em julho de 1971 para seguirem carreira solo. João então, após alguns meses, recrutou o amigo e vizinho Gérson Conrad, que compartilhava de quase todos os mesmos gostos e sonhos. Mas ainda faltava uma peça importante para essa nova reformulação, um vocalista. De imediato, Luhli parecia ser o nome mais sensato a vista, porém, ao fazer o convite à amiga, ela acaba indicando um amigo que acabara de se mudar do Rio de Janeiro para São Paulo. Um tal Ney Matogrosso

Meus amigos, este homem apesar das particularidades e estilos únicos, posso afirmar sem medo, que é o que, felizmente, ainda temos de mais próximo de um David Bowie, Elton John ou Freddie Mercury. Talvez a mistura mais original destes três. Um verdadeiro exemplo de talento, caráter e hombridade. Sabe aquele tipo de pessoa que é capaz de quebrar as outras apenas com argumentos?

Pois bem esse é o caso.

De família com histórico militar, Ney serviu à marinha por um tempo. Ele fugiu de casa em busca de uma vida mais leve, longe da repressão do pai, que condenava e repudiava a escolha do filho por seguir o caminho artístico. Segundo o cantor, esse foi o momento da vida em que ele se sentiu finalmente livre, fazendo e vendendo os seus artesanatos na praia e iniciando a carreira no teatro em pequenos musicais. Apesar do pouco dinheiro, ele estava mais do que feliz com a nova vida que levava. Quando Luhli dissera sobre João e o projeto, a intuição falou mais alto e algo lhe dizia que o momento era àquele. E assim a formação clássica da banda começou.


Assim, os Secos & Molhados ensaiaram arduamente para realizarem, um ano depois, uma apresentação na Casa de Badalação e Tédio, uma espécie de casa noturna que era anexada ao Teatro Ruth Escobar. Acompanhando o trio, estava o baterista Marcelo Frias, o baixista Willi Verdaguer e o guitarrista John Flavin. As ousadas performances do grupo traziam figurinos e maquiagens extravagantes, advindas de diversas influências, dentre elas, Teatro Kabuki e o Glam Rock. Já as canções, traziam um pouco de cada estilo vigente na época, sendo praticamente impossível rotular o tipo de som que a banda fazia.

Apesar da postura transgressora, a censura pouco pôde fazer para frear o sucesso que o grupo fez, uma vez que, as letras eram quase que subliminares e de livre interpretação, trazendo poemas de grandes poetas, como Oswald de Andrade, Vinicius de Moraes, Fernando Pessoa, entre outros.

Todo o burburinho e audiência levantada pelo trio em praticamente todas as apresentações feitas chamaram a atenção de Moracy do Val, que pouco tempo depois, se tornaria o empresário dos Secos, apresentando a banda para os executivos da gravadora Continental, que na época era uma das principais companhias fonográficas nacionais.

E o fatídico dia das gravações do disco de estreia aconteceu em 23 de maio de 1973. As 13 faixas que permeiam a obra, foram gravadas em quinze dias durante sessões diárias de seis horas cada no estúdio Prova.

A capa do disco foi outra história a parte. A icônica fotografia foi registrada pelo fotógrafo Antonio Carlos Rodrigues, e levou uma madrugada inteira para ser produzida, trazendo a cabeça de todos os membros dos Secos & Molhados em bandejas numa mesa de jantar ao lado de inúmeros alimentos e bebidas. Segundo os integrantes aquela foi quase uma sessão de tortura, onde foram submetidos a sentarem em cima de tijolos por horas, sentido frio do pescoço para baixo e calor na cabeça devido às luzes do estúdio.

Apesar de presente na icônica capa, Marcelo não quis permanecer na banda nos anos seguintes…

Não espere por virtuosismo ou técnica apurada neste trabalho. As treze músicas de Secos & Molhados tem a simplicidade como fator dominante.

Sangue Latino traz uma ótima melodia de contrabaixo, trazendo uma abertura mais calma, porém, de letra forte, uma canção rápida e direta. O Vira já chega para fazer o ouvinte dançar no maior estilo Rockabilly com pitadas de Fado português. Junto com a faixa anterior é uma das mais conhecidas do grupo, sendo executadas até os dias de hoje nos shows solo de Ney Matogrosso.

Os dedilhados e vocais sensíveis fazem de Não, Não Digas Nada uma das faixas mais belas do trabalho, com direito até a mesmo a solos de flautas realizados com maestria e perfeição por Sergio Rosadas.  Amor traz mais passagens interessantíssimas do contrabaixo de Willi Verdaguer, que consegue extrair certa complexidade mesmo em composições tão simples.

Primavera nos Dentes é a faixa mais longa do trabalho e talvez a que mais possui uma técnica mais apurada de todos os instrumentos sendo calcada em uma sonoridade mais voltada ao blues. Algo eu diria, meio Pinkfloydiano.

Assim Assado traz mais melodias bonitas tanto instrumentais como na linha vocal de Ney. Aqui o lendário Guarda Belo do clássico desenho da turma do Mandachuva é utilizado como uma figura de linguagem para descrever os algozes militares.

Mulher Barriguda é a canção mais pesada do disco, com a clássica levada do rock setentista. Já em El Rey temos melodias quase que medievais, e que de tão curta, nos deixa com a sensação de quero mais.

Chagamos na icônica e lindíssima Rosa de Hiroshima, uma verdadeira obra prima musicada pelo grupo de um poema até então desconhecido de Vinicius de Moraes. Segundo Gerson Conrad, o próprio poeta veio a agradecê-los pela canção, dizendo que há tempos se sentia frustrado por pensar que ninguém adaptaria o texto no formato de canção.

Prece Cósmica traz uma sonoridade quase que preguiçosa, arrastada, que por algum motivo, me remeteu a uma viagem de ácido. Rondó do Capitão carrega certa teatralidade, podendo ser imaginada em meio a um musical.

As Andorinhas é outra faixa rápida de aura mística e misteriosa, a letra é quase um haicai e impacta: Nos fios tensos da pauta de metal, as andorinhas gritam por falta de uma clave de sol.

O encerramento chega com a lenta, romântica e magnífica Fala.

De forma extremamente rápida os 30 minutos de duração de Secos & Molhados se passam. Este sem sombra de dúvidas é um dos trabalhos de mais fácil repetição que já ouvi. Ele é um daqueles típicos casos, onde as músicas são tão boas e bem aplicadas na sequencia do disco, que proporciona a sensação de estarmos ouvindo na verdade uma coletânea.

Lançado em agosto de 1973, o disco foi simplesmente um arraso de vendas, batendo o recorde histórico na indústria fonográfica brasileira, vendendo mais de 300 mil cópias nos primeiros 60 dias. Vale ressaltar, que nesta época, o poder aquisitivo da população era muito diferente do que temos atualmente. Inclusive esse recorde assustou um famoso cantor que era tido como o maior vendedor de discos do país. Não vou dizer quem é, mas até certo tempo atrás ele se tornou um panetone, aparecendo em todo maldito especial de fim de ano de certa emissora carioca…

Todo esse êxito gerou outras incríveis experiências para os Secos & Molhados. Por mais que tentei resumir, muita coisa bacana acabou ficando de fora, mas se você se interessou e quer saber mais sobre esses caras que marcaram os anos setenta, temos dois ótimos livros no mercado que com certeza saciarão a sua sede por Secos e Molhados. Um deles inclusive foi escrito pelo próprio Gerson Conrad, trazendo as memórias do que viveu naquele tempo, chamado Meteórico Fenômeno.  Já Primavera nos Dentes é a biografia do grupo escrita por Miguel de Almeida. 

               

O trabalho de estreia de João, Gerson e Ney é tido como um dos álbuns mais influentes da música brasileira. E apesar deste feito, nenhum dos três possuem aquela postura messiânica, quase clerical adotada por artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil e afins. Juntos, a formação clássica dos Secos & Molhados ainda conseguiriam replicar o sucesso com um segundo álbum. Mas, como tudo que é bom dura pouco, a banda se desfez pouco tempo depois.

Ney partiu para uma bem sucedida carreira solo, lançando em 1975 Água do Céu – Pássaro .Conrad trabalhou colaborando com outros artistas. Já João Ricardo ficou com os direitos do nome da banda, reformulando-a diversas vezes no decorrer dos anos, porém sem 1% dos êxitos de outrora. O resto é história…

 

Tracklist
1) Sangue Latino
2) O Vira
3) Não, Não Digas Nada
4) Amor
5) Primavera Nos Dentes
6) Assim Assado
7) Mulher Barriguda
8) El Rey
9) Rosa de Hiroshima
10) Prece Cósmica
11) Rondó do Capitão
12) As Andorinhas
13) Fala

 

 

 

 

 

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.