Falar de Metal nacional e não falar de Andreas Kisser beira a heresia. O icônico guitarrista esteve nos tempos de ouro do Sepultura e até hoje é responsável por manter a maior banda de Metal do Brasil no topo, apesar das diversas mudanças que se passaram ao longos anos. Além das obras com a clássica banda mineira, Kisser já dividiu palcos e trabalhos com incontáveis músicos renomados de nosso país, continente e mundo, e se firma cada vez mais entre um dos mais influentes guitarristas do Metal. Recentemente, sua banda paralela De La Tierra foi nomeada ao prêmio de Melhor Álbum de Rock do Grammy Latino 2017, o que consagra o trabalho feito por Kisser no ano passado, quando trabalhou na gravação e produção dos álbuns “II”, de seu supergrupo, e do “Machine Messiah”, do Sepultura. 
 
Com muita coisa pra contar, tivemos a oportunidade de bater um papo com Kisser e ele nos contou um pouco sobre como é sua rotina dividindo tempo com as duas bandas e suas experiências com elas ao longo destes anos.
 
 
Andreas, muito obrigado por dedicar um tempo aqui pra conversar conosco, em meio a essa sua rotina de correria, fazendo show em todo canto. Inclusive, está conduzindo agora a turnê promovendo o “II” do De La Tierra, que começou lá no México com um show que foi totalmente beneficente, em pró das vítimas dos terremotos que devastaram inúmeras famílias mexicanas. Como foi essa iniciativa e esse show?
 
Andreas Kisser: Eu que agradeço o espaço, cara. Esse show foi muito legal, principalmente porque foi além de nossas expectativas em termos de arrecadação. Além de termos dedicado todo o valor das entradas para ajudar as vítimas dos terremotos, conseguimos um patrocínio que para cada ingresso vendido ele adicionou cinco pesos mexicanos, então aumentou bastante o valor arrecadado. Além disso, foi um show muito divertido pra nós, que voltamos o México com o De La Tierra após um longo tempo. A casa estava lotada, o público muito empolgado e pra nós foi um ótimo show. Estamos com um novo baixista no lugar do Sr. Flavio, e estamos aproveitando bem o que o Harold Hopkins vem trazendo pra gente. Sr. Flavio toca com os Fabulosos Cadillacs, enquanto Harold toca com o Puya, que é mais próximo ao Metal. Sr. Flavio trouxe muitas ideias por tocar coisas como ska, rock, reggae, e isso somou bastante no som que trabalhamos no D.L.T., e o Harold vem tocando isso que ele criou na banda, mas com seu jeito mais de Metal. 
 
E o De La Tierra na verdade está num momento fantástico, né Kisser? Recebeu essa nomeação para o Grammy Latino…
 
Kisser: Sim, fantástico. Era uma coisa que não era esperada, o disco foi lançado no ano passado e não tivemos a oportunidade de divulga-lo com turnê da forma que queríamos, já que sempre é difícil conciliar agenda em um supergrupo. Mas relançamos o álbum agora, pela Sony Latina e pudemos então começar a marcar shows e então veio essa nomeação ao Grammy Latino. Tem sido difícil conciliarmos nossas agendas, isso desde a criação da banda, mas sabíamos disso, são dificuldades de se ter um supergrupo, mas como gostamos de tocar, gostamos desse projeto, a gente vem tentando, desde o passado, arranjar tempo pra ensaiar, pra gravar, pra fazer show… tanto é que lá no começo, nós lançamos o álbum de estréia em janeiro e só fomos fazer nosso primeiro show em Bogotá, com o Metallica, em março. Mas como disse, como a gente tá curtindo a gente dá um jeito, e tá dando certo assim.

 

Realmente imagino o quão difícil deve ser conciliar essas agendas, mas vocês estão com uma turnê agora, com passagens por alguns países da América Latina, inclusive Brasil. 
 
Kisser: Isso, Bolívia, Chile, São Paulo. Mas a gente está tentando ir pra Europa, porque temos o intuito de quebrar essa barreira que tem por lá, não vemos as bandas latinas tendo grandes participações na Europa, e queremos encontrar algumas datas lá pra podermos promover nossa cultura, que é o grande intuito do De La Tierra. A gente vê bandas como o Rammstein que só canta em alemão, pois essa é a proposta deles, assim como a nossa é cantar em espanhol, algumas coisas em português. A gente criou esse projeto com a intenção de mostrar uma musicalidade diferente, essas influências latino-americanas, então a gente quer levar isso lá pra fora também, além de claro, promover o que a América Latina tem pra oferecer de Metal.
 
E acredito que essa nomeação ao Grammy por conta de vocês também tende a trazer um grande impacto nessa cena latino-americana de Metal, trazer mais atenção pras bandas desse estilo.
 
Kisser: Sim, sem dúvidas. Isso tem uma influência grande pra esse cenário e também proporciona a chance de levar o De La Tierra pra outros vôos.
 
Voltando ao tópico da conciliação de rotinas, 2016 deve ter sido um ano bastante corrido pra você, que esteve à frente de duas bandas que estavam em estúdio gravando novos álbuns, ainda tendo shows no meio disso tudo. Com o D.L.T. você lançou o “II” em 13 de novembro, e exatamente dois meses depois, o “Machine Messiah” pelo Sepultura. Como que você fez e faz pra conseguir dar conta disso?
 
Kisser: Bom, a data de lançamento do “Machine Messiah” na verdade foi adiada, originalmente seria em outubro e acabou sendo em janeiro, mas no final isso foi bom, pois iria criar um conflito ainda maior de agendas, e saindo no começo de 2017 tornou melhor a divulgação do álbum. Mas o que mais facilita é que o pessoal do Sepultura trabalha junto com o pessoal do De La Tierra, até tem alguns que trabalham pras duas bandas, principalmente pessoal que cuida das tours, então, isso ajuda a fazer essa conciliação. Mas ainda assim é quase um quebra-cabeças, principalmente pro D.L.T., mas é uma situação que a gente respeita muito, pois sabíamos bem que ia ser assim desde o início, já que estamos falando de bandas muito ativas, que são Sepultura, Maná, A.N.I.M.A.L. e Fabulosos Cadillacs… assim seria o D.L.T., não tinha outro jeito. Mas isso acaba ajudando um pouco, pois nos recicla, e a gente tem um privilégio, sabe, de não cansar um do outro…
 
Realmente, vocês conseguem evitar esse desgaste da convivência e ainda trazem cada um sua experiência em suas outras bandas.
 
Kisser: Exato. O De La Tierra é exatamente isso, então, a gente tem consciência disso e assim conseguimos curtir, sabe? O show no México foi fantástico, e saindo do palco peguei um carro e fui direto pro aeroporto, onde peguei um avião e fui até Bogotá e de lá pra São Paulo, onde peguei outro carro e fui tocar na gravação do DVD do Dudu Braga, com participação especial do Roberto Carlos. Então, velho, pra mim, qualquer oportunidade dentro da agenda, se tem um buraco ali que dá pra fazer algo, eu acho que vale a pena. Sempre há possibilidade de algo dar errado, como cancelamento de vôo e etc, mas não vou perder uma oportunidade por causa de um risco desse, sabe? Se há possibilidade de fazer, como aconteceu e deu certo, é porque é possível. Tem que ter força de vontade, porque pra mim é um privilégio poder tocar com músicos como o Andrés Giménez, Alejandro González, Sr. Flavio, o Harold… pra mim é simplesmente espetacular, estar nisso é como se eu tivesse com 17, 18 anos com uma banda nova, porquê, mesmo com toda nossa experiência, é uma banda nova. São idéias novas, propostas novas, então isso tudo motiva bastante a seguir mesmo com essas questões de agenda.
 
Aliás, com 18, 19 anos, nessa sua época de jovem, foi quando você entrou no Sepultura. O que chama mais atenção no Sepultura é que a banda se adaptou muito bem com o tempo, que começou com tendências de Death Metal, transitou pro Thrash Metal nos discos seguintes e quando chegou no “Roots” passou a puxar muito pro Groove Metal também. Essas mudanças na sonoridade da banda sempre foi algo natural de vocês que fazem parte do Sepultura? Como que vocês iam e vão encarando essas transformações?
 
Kisser: Quando a gente começou realmente a gente era muito jovem, então tínhamos uma cabeça, e estávamos inseridos em uma realidade que mudou muito com o passar do tempo. O que a gente sempre buscou foi fazer música, e inserir coisas novas faz parte dessa arte, que deixa mostrarmos nossas influências. Quando saímos do Brasil, mudamos muito nossa perspectiva dessas coisas também, pois a gente curtia só o Heavy Metal que vinha do exterior, e lá fora passamos a entender a grandeza da musicalidade brasileira, que traz muita riqueza, mas a gente não curtia essas coisas como carnaval como curtíamos Iron Maiden, Judas Priest e Black Sabbath… mas então a gente passou a prestar mais atenção nessas coisas, como a bateria de uma escola de samba, que é uma cacetada, quem já viu sabe o quão explosivo aquilo é. Então, foi a partir daí que passamos a explorar e ter essa característica mais percussiva em nosso som. Fora que também, a gente nunca teve medo de arriscar, a gente tomou isso como uma coisa positiva e passamos a utilizar elementos que nunca tinham sido usados no Metal, porque é isso que é a arte, novamente dizendo, não tem isso de “ah, mas é Metal, não pode misturar com isso”. Música é arte, a gente sempre procurou explorar esses elementos, e foi muito por isso que conseguimos chegar a um lugar de destaque com o Sepultura, sendo diferente de várias outras bandas do estilo.
 
Esse é um ponto que acho muito interessante de se mencionar, inclusive. Até no “Machine Messiah” fica claro isso, que o Sepultura nunca mostrou medo em inovar, em trazer novos elementos. Agora vocês trouxeram muitos elementos orquestrais, teclados, seguiram essa linha de atualizar bastante a sonoridade da banda.
 
Kisser: Isso a gente deve também bastante a termos trabalhado com produtores fantásticos ao longo de nossa carreira. Caras que nos prepararam tecnicamente para termos a melhor performance em estúdio, caras que nos passaram a confiança que precisávamos, que vinha de fora e comprava a briga, por que muitas vezes, como no “Roots”, a gravadora começava a arrancar os cabelos, e até a gente também, afinal, ninguém sabia o que ia acontecer! É que o processo foi simplesmente acontecendo, e da demo inicial até o resultado final foram mudanças drásticas. Então, eu acho que essa falta de medo, essa coragem pra arriscar, faz parte da arte da coisa, né? Isso de explorar, inserir novidades, não existe isso de “não pode”… Uma orquestra é nada mais do que isso, diversos instrumentos juntos e organizados, então, em uma banda isso não é diferente.
 
Ainda falando sobre o último álbum do Sepultura, uma coisa que me chamou muita atenção foi a questão da temática abordada. Vejo que foi direcionado a um ponto onde aborda essa certa devoção e dependência de uma boa parcela de nossa população a tecnologia, que se faz cada vez mais presente no nosso dia-a-dia. Como foi que vocês chegaram nesse conceito e falaram “olha, isso vai render um álbum muito bom”?
 
Kisser: Eu cheguei com essa ideia bem cedo, foi bem no momento em que a gente tava juntando as coisas para compor, escrever, de colocar as ideias juntas. E esse conceito nada mais é do que aquilo que a gente vê hoje, né? Temos o privilégio de viajar pelo mundo desde 1989, mas antes disso a gente só estava dentro do Brasil, e a hora que saímos vimos como era diferente lá fora, e ainda assim, havia muita mudança entre um país e outro. E até hoje a gente nota muito isso, pois vamos a países como EUA, Alemanha, Japão, que são países onde a tecnologia se faz muito presente, enquanto em outros países tem fãs nossos que precisam fazer um grande esforço financeiro pra poder ir em show nosso, ou comprar uma camiseta… sabe, são coisas que não chegam pra gente através do Discovery Chanel ou Jornal Nacional, tá ligado? A gente tem essa conexão direta, com o cidadão do país pra onde vamos. Gostamos de nos conectar com a cultura dos países, de nossos fãs, o que cria uma conexão mais complexa e profunda, e a tecnologia nos ajuda nisso de alguma forma. A gente vê a importância desses avanços em diversas áreas, a ciência ajuda muitas pessoas de diversas formas. Vemos isso no dia-a-dia, nos Jogos Olímpicos com atletas utilizando próteses, pessoas que conseguem levar uma vida melhor, a se locomoverem melhor… mas em contra-partida tem essa escravidão ao smartphone, laptop, tablet… a gente vê mesas de restaurante onde ninguém se olha, ninguém conversa com ninguém. Muitas pessoas estão ficando com falta de vontade de pensar, ficam dependentes de aplicativos pra comer, aplicativos pra dizer se tem que ir pra esquerda ou direita. Então a verdade é que os “robôs” não estão levando a gente a desenvolver muito o intelecto, e alguns se prendem muito a isso. O foco está saindo, digamos, da frequência, energia espiritual, isso cabe a como cada religião chama, certo? Mas os robôs, tecnologia, estão desviando esse foco de nosso equilíbrio, parece. 
Como disse, esse é um tema que me interessa bastante, e achei muito bem colocado o seu ponto de vista e vejo muita verdade nisso. Pra encerrar, você diz estar viajando mundo à fora desde 1989, desde novo você tem feito shows, desde aqui no Brasil até festivais enormes lá fora. Hoje você toca com seu filho Yohan no Kisser Clan, e com ele já tiveram oportunidades de tocar em eventos com públicos grandes, até no palco da Rock Street do Rock in Rio. Você, quando tinha a idade dele, imaginava que um dia estaria a frente da maior banda do Metal Brasileiro e seria um dos músicos mais respeitados e influentes do Metal internacional?
 
Kisser: Ah velho, olha, nem em sonho! Acho que nem tinha informação suficiente pra imaginar as coisas que aconteceram e ainda estão acontecendo (risos). Sabe, só de o Sepultura sair pra tocar fora já foi algo inimaginável, então, a gente foi aprendendo as coisas com o passar dos dias, até coisas como de quanto em quanto tempo deveríamos trocar as cordas da guitarra… foram coisas que fomos aprendendo com a vivência. Então, foi uma grande escola pra gente. Fomos pra Europa tocar com o Sodom, e saindo pra ir em um bar por lá a gente encontra o Lemmy (Kilmister), que paga cerveja pra gente. Então, é uma faculdade que a gente pediu a Deus.
 
O sonho foi se moldando aos poucos…
 
Kisser: Isso, a gente se prepara e acontece, então… sabe, é muito foco e energia boa, né cara? A gente sempre foi uma banda muito profissional, sempre levamos muito a sério, desde horário de ensaio, hora de estar pronto no palco, isso sempre tivemos em cabeça desde o começo. A gente se preocupava em estar sempre muito bem preparados, por isso sempre ensaiávamos bastante, batíamos cartão praticamente, era realmente o nosso trabalho. Isso que a gente nem tirava grana com os shows ainda, tínhamos ajuda de nossas famílias, mas éramos muito profissionais nesse aspecto. Por causa de nosso preparo, acabamos aprendendo a nos virar em qualquer tipo de situação, e tivemos que passar por elas, como tocar com qualquer tipo de equipamento. Isso foi muito positivo pra gente, pois aprendemos a fazer acontecer. Eventualmente, fomos tocar em Cuba, em 2008, ou 2009, e as condições eram muito precárias, então tivemos que ajudar, levar equipamento, enfim… aprendemos a tomar conhecimento de como funcionam as coisas de um show para podermos fazer por nós mesmos, que foi o que aconteceu na época. Tudo isso fez parte desse processo de aprendizagem pelo qual passamos ao longo de nossas carreiras.
 
Andreas, só tenho o que agradecer, espero que tenha gostado da conversa, agradeço muito, principalmente como fã do Sepultura, e se quiser deixar um recado aí pro pessoal que vai estar lendo.
 
Kisser: Meu, eu que agradeço pelo espaço, gostei muito sim. E claro, quero sempre agradecer o apoio de sempre de nossos fãs espetaculares, são eles que mantém o Sepultura sempre na ativa, tocando, com motivação, ao longo desses quase 34 anos e pelos próximos que estão por vir. Muito obrigado a todos vocês!
 
Agradecemos especialmente à Fernando Becker, vocalista da banda Underworld Secret, por nos ajudar à chegar até Andreas Kisser e tornar possível esta entrevista. 
Onde há espaço para escrever, tenha certeza que irei deixar minhas palavras. Foi assim que me tornei letrista, escritor e roteirista, ainda transformando minha paixão por música em uma atividade para a vida. Nos palcos, sou baixista da Dark New Farm, e fora deles, redator graduado em Publicidade e Propaganda para o que surgir pela frente.