Que os metaleiros sejam as “Cassandras” da música popular moderna, como afirmei em texto anterior publicado neste portal, não é difícil de verificar. Os alertas sobre O Fim são ubíquos nessa subcultura, espalhados entre as mais diversas faixas de, virtualmente, todos os subgêneros do espectro Metal: se a catástrofe nuclear e/ou militar assolava os thrashers – como já havia, aliás, assolado a imaginação do Black Sabbath uma década antes – a “espada vingadora dos anjos” deixou sua marca em bandas como Judas Priest, Metallica e Iced Earth, e o retorno de antigas profecias e civilizações perdidas – elas próprias vitimadas por outros cataclismos – pautou algumas letras da NWOBHM[1]. Nos extremos, o Black Metal nunca deixou de buscar abertamente o inferno metafísico e, com frequência, o Death Metal convoca as criaturas do inferno (e hordas de zumbis) para que venham e façam logo o serviço de acabar com este “world of shit”; sem contar o caso autoexplicativo do Doom Metal, tributário mais direto do Sabbath, que traz, no próprio nome que o designa (“doom”), a ideia de “condenação”, “ruína”, “juízo final” e “má fortuna”[2].

Outros tópicos preferidos do Metal costumam também girar em torno de variadas formas de aniquilação humana, seja pela sugestão de um colapso social ou ambiental, invasão alienígena ou revanche planetária das máquinas. Que o Iron Maiden tenha escrito, em 1983, uma canção satirizando os “profetas do apocalipse” não deixa de ser irônico, visto que os próprios metaleiros vêm seguindo, insistentemente, desde os seus primórdios, a missão de serem eles próprios esses tais profetas, num ambiente artístico em que talvez a única exceção sejam certas bandas de Power Metal nas quais a ameaça do extermínio pelas forças sombrias costuma ser sobrepujada por alguma fonte de luz, divina ou humana – como, por exemplo, as virtudes e o caráter de heróis que encarnam os valores medievais de cavalaria. Afora isso, para o pavor ou regozijo dos eus-líricos, nós, humanos, costumamos nunca ter como nos defender d’O Fim.

Os primórdios dos italianos do Rhapsody são um exemplo de banda em que o
Os primórdios do Rhapsody são um exemplo de banda em que o “bem” costuma sobrepujar o “mal”.

Mas é uma exceção importante e que não pode, como é costume, ser contornada impunemente se quisermos produzir uma interpretação completa da sensibilidade metaleira. Então, sugiro hoje uma reflexão breve sobre a natureza dessa diferença introduzida pelo Power Metal nas comunidades headbangers desde os anos 1980, atentando antes para o fato de que no próprio universo Power há, é claro, grande variedade de abordagens para o embate entre “o bem” e “o mal”, a “resistência” e a “destruição”, o “voo” e a “queda”, mas não estou, agora, em condições de fazer um mapeamento amplo das diferenças internas que marcam esse subgênero cá e lá, na Europa e na América, na Finlândia e na Itália, no hemisfério Sul ou no Norte etc. Proponho, apenas, alguns apontamentos de passagem, que podem ajudar a localizar melhor o lugar desse estilo no contexto da cultura. Vejamos.

Baseio-me, sobretudo, nas ótimas conclusões aferidas por Andrew L. Cope em sua Tese intitulada Black Sabbath and the Rise of Heavy Metal Music, onde argumenta, fundamentado em análises muito bem conduzidas, que as raízes do som metaleiro estão fincadas no Black Sabbath assim como as do Hard Rock estão no Led Zeppelin. Dentre outros, um dos seus principais argumentos para localizar o Sabbath aí, nas origens do Metal, é que seus riffs são mais baseados em escalas modais do que nas tradicionais pentatônicas blueseiras. Além de tudo, a cereja do bolo é que, no Black Sabbath, prevaleceriam os modos mais emocionalmente “pesados” e/ou “sombrios”, especialmente o frígio e o eólio.

Tanto o frígio quanto o eólio são modos em que o acorde tônico é menor, por possuir 3ª menor e 5ª justa. O lócrio, outro que seria útil ao repertório metaleiro, sendo o único dos sete modos principais cujo acorde tônico é diminuto (3ª menor e 5ª diminuta), parece não ser tão utilizado – talvez pela dificuldade de harmonizá-lo. Até onde os meus poucos conhecimentos de teoria musical alcançam, campos harmônicos construídos em torno de acordes menores costumam ser ouvidos como mais “taciturnos”, “pesarosos”, “infelizes”, enquanto aqueles construídos em torno de acordes diminutos são ouvidos como “tensos”, “dissonantes”, “caóticos” e “incômodos”. Além disso, uma das características principais do modo frígio (e do lócrio) é a presença de uma 2ª menor, o que traz uma tensão na parte de baixo da escala, entre a primeira nota e a segunda, sempre pedindo uma resolução “para baixo”. É como se a escala frígia funcionasse melhor sendo tocada de trás para frente, ou seja, em movimento descendente. E o que é, amigos, um movimento descendente, se não uma queda?[3]

O modo frígio, pelo destaque dado ao semitom entre as duas primeiras notas, possui forte tensão na parte inferior da escala, assumindo conotação
O modo frígio, pelo destaque dado ao semitom entre as duas primeiras notas, possui forte tensão na parte inferior da escala, assumindo conotação “descendente”.

Ao que arrisco complementar: o uso desses modos, que possuem tal carga de significação específica (“tensos”, “pesarosos”, “sombrios”, ao menos para os ouvidos ocidentais) não é certamente uma coincidência, mas um gesto de adequação formal entre o conteúdo literário (a letra) e o conteúdo musical das faixas. Se os temas preferidos do universo sabbathiano giram, como se sabe, em torno da decadência e danação humanas, do perigo, da iminência do fim, então os modos cujas tensões chamam para resoluções “descendentes”, escala abaixo, certamente são os mais adequados para gerar a atmosfera que corresponda aos temas. Nesse sentido, os modos maiores (especialmente o lídio e o jônio) não seriam tão eficientes em produzir o movimento de “queda” nas tensões-resoluções melódicas e harmônicas que se encaixariam perfeitamente ao conteúdo literário genérico dos metaleiros.

O uso desses modos não é uma coincidência, mas um gesto de adequação formal entre o conteúdo literário e o conteúdo musical das faixas

Constatar isso (se estiver correto), embora interessante, não deixa, porém, de encontrar alguns limites. Primeiro, porque, como alguns amigos músicos já me asseguraram, os modos em si não produzem obrigatoriamente uma atmosfera x ou y, triste ou alegre, ao serem transformados em música, mas o que ocorre é que a forma específica de cada modo tende a “coagir”, “direcionar” seu uso para a construção de harmonias e melodias com características “x” ou “y”, alegres ou tristes, luminosas ou sombrias – o que não inviabiliza, dependendo da maneira como forem usados, que produzam efeitos muito diferentes e inesperados.

Outro limite dessa leitura, e que me interessa ainda mais, é justamente o tema deste texto hoje: a evidência do caráter entusiasmado, glorioso e até saltitante que boa parte do Power Metal, especialmente o europeu, comunica, e que não é apenas impressão minha, mas também de alguns comentadores que apelidaram o estilo de happy metal. Eu não conseguiria transcrever de ouvido a melodia vocal de Eagle Fly Free, ou I’m alive, do Helloween; ou Phoenyx do Stratovarius; ou ainda Emerald Sword, do Rhapsody, para uma pauta e depois analisá-las de forma a descobrir o modo específico em que foram escritas. Mas parece-me claro que são melodias de propensões ascendentes, ou que possuem acentuação melódica em trechos ascendentes, ou que, geralmente, tendem a sustentar as notas mais agudas (depois de saltos ascendentes), onde adequam-se às sílabas tônicas das palavras. De qualquer maneira, o aspecto melódico do Power Metal europeu é caracterizado por variações constantes para cima e também para baixo, com grandes intervalos de altura entre notas, e essa amplitude melódica[4], junto com a alta velocidade que é característica do gênero, favorece um aspecto “lépido”, “ágil”, “jovial”, se não “alegre” (porque nem sempre)[5], mas de qualquer forma “aberto”, “glorioso” e “volante”. Isso certamente ajuda a entender as preferências temáticas, que vão de aventuras de cavalaria medieval[6] à fantasia estilo D&D – mas, ainda mais curiosamente, um improvável (para os tão “taciturnos” metaleiros) interesse por aves de rapina, reais ou míticas, como a águia e a fênix, cujo voo é geralmente convocado como símbolo de liberdade e afirmação contundente da vida. Some-se a isso a recorrência das jornadas para extrapolar os limites exteriores do planeta (daí a ficção científica abundante em, por exemplo, Gamma Ray), alçando voo e saindo pela estratosfera a penetrar noutras galáxias[7]. Nesse caso, é claro, a opção pelas melodias ágeis e/ou ascendentes parece uma escolha natural: são a representação melódica de águias voando, planando e mergulhando, para outra vez decolar, livres na imensidão do céu, e assim sucessivamente; ou ainda aviões, espaçonaves, dragões, criaturas aladas de todos os tipos.

 

Esse movimento de abertura, “para fora”, contrasta fortemente com quase todo repertório temático historicamente atribuído ao Metal e ao Black Sabbath, que costuma afirmar um vetor em direção “para dentro”: o Thrash, como já disse, volta e meia apresenta uma forma de pensamento lírico-musical em que a imagem prevalecente é a dos objetos e/ou acontecimentos que vêm de fora em direção a nós para nos destruir (apocalipse), ou as imagens do inferno católico (que tendemos a imaginar “embaixo”, dentro da terra); no caso do Death Metal, busca-se chafurdar no interior do corpo, nas vísceras, ou ainda no nosso subconsciente, que é como as vísceras da psique[8]. Tudo isso acompanhado por estilos vocais de pouco ou quase nenhum investimento melódico, mais falados que cantados, aproveitando um tanto da melodia natural da fala e se aproximando, assim, não só das formas gritadas do Punk como, também, do RAP[9]; ou ainda um vocal meramente sonoplástico, onde o objetivo não é que a letra seja entendida, mas que o efeito tímbrico e imagético de uma voz de “monstro”, “zumbi” ou “demônio” caracterize uma ideia ou uma criatura que está sendo representada pelo vocalista – aliás, o que é o vocal gutural, se não justamente aquele que vibra o som na garganta, a parte mais baixa, “inferior”, do aparelho fonador? Novamente, as correspondências entre letra e som justificam as escolhas formais das bandas. E assim por diante.

Num contexto desses, pela contundência retórica dos gêneros de Metal mais extremos, acaba sendo comum que o pensamento sobre a cultura metaleira caia no erro de assumi-la apenas em relação a eles, ganhando a conotação de um anúncio insistente e indefeso da desgraça, da violência e do apocalipse – e esquecendo do seu outro lado, o lado “luminoso” da moeda cunhada pelos metal gods. Não apenas no Power Metal, mas também no Metal tradicional e na NWOBHM podemos encontrar muitos casos que diferem do senso comum do metaleiro dark e carrancudo, o que obriga a um entendimento mais complexo e completo do espectro dessa cultura: é, sim, a música das Cassandras, mas não só – o que, por tabela, também obriga a pensar: se o Black Sabbath, com seu heavy metal rock sombrio, catastrófico e pesadelesco, é o principal alicerce que sustentará o desenvolvimento da linhagem mais “noturna”, “pesada”, “para baixo e para dentro”, do universo metaleiro, onde poderemos encontrar os fundamentos da linhagem mais “diurna”, “volante”, “para o alto e para fora”? Meu palpite é que, para iniciar essa resposta, devemos nos basear na combinação de inúmeros fatores, que incluem influências musicais menos específicas e mais difusas, nesta ou naquela faixa de uma série ampla de bandas como Deep Purple (Highway Star, caramba!)[10], Led Zeppelin, Queen, Uriah Heep (e outros rocks progressivos), Scorpions, Rainbow etc. – umas pela sonoridade, outras pelos temas, e assim por diante.

Sim, eu sei: estas não são bandas de Metal, algumas estão até um pouco longe disso[11], mas existem canções específicas no seu repertório que parecem ter marcado decisivamente os ouvidos setentistas na direção para a qual venho apontando neste texto: o lado mais fantástico, sonhador, glorioso – feliz, até, em alguns casos – da música metaleira, no qual o Power Metal é apenas o exemplo mais extremo.

Notas:

[1] Acrônimo para Nova Onda do Heavy Metal Britânico – aquela do Iron Maiden.

[2] Para não me alongar demais, deixo uma pequena playlist com as primeiras faixas que me ocorreram, a título de exemplo. São canções que falam diretamente de alguma espécie de apocalipse ou enfrentamento terminante para o planeta Terra, a espécie humana e/ou outras espécies; mas adicionei também algumas cujas letras mencionam a “catástrofe final” só de passagem, ou de forma cifrada. Entretanto, a lista seria infindável, e tenho certeza que, se você costuma prestar atenção às letras das músicas que escuta, saberá completar com aquelas que porventura eu tenha esquecido ou desconheça.

[3] O Black Sabbath, como o próprio Andrew Cope aponta, também aposta muitas vezes no modo mixolídio (War Pigs), que, no entanto, é um modo maior, e um dos preferidos do Rock (ex: You really got me, dos Kinks).

[4] O que rendeu ao estilo o título de “Metal Melódico” no Brasil.

[5] Não quero dar a entender que o Power Metal seja só felicidade. Há espaço nele, inclusive, para os temas do apocalipse e correlatos – que são, de fato, os mais presentes e marcantes da cultura metaleira geral, chegando a constituir um traço distintivo. No entanto, se há um lugar no Metal onde encontraremos sentimentos positivos com boa frequência, é aqui.

[6] “Cavalaria”… Não são os cavalos símbolo de, ao mesmo tempo, força e liberdade? Assim como a motocicleta, que também serviu de iconografia para muito do Heavy Metal inicial.

[7] Reparem no título de algumas faixas do Stratovarius: Galaxies, Infinity, Luminous, Eternity, Forever, Freedom, Eagleheart, Stratosphere, Visions. Todas esses nomes apontam para a “abertura”, para a “amplitude”, para o “alto”, para o “além do alcance” ou para o “sem limite”. Mas o Stratovarius talvez seja um exemplo extremo, já que o otimismo de uma parte de suas músicas chega a ser, no contexto metaleiro, sui generis. Até em canções suas que reconhecem o mundo como um lugar terrível e fadado à extinção, há uma esperança de mudar para melhor. Os exemplos que me ocorrem disso são as faixas Infinity, Visions e World on Fire.

[8] A fase mais “filosófica” da banda Death exemplifica isso bem.

[9] E não foram justamente as bandas thrash as primeiras a explorarem parcerias com os rappers?

[10] A alta velocidade de muitas músicas do Purple, bem como as influências neoclássicas que aparecem na linguagem guitarrística de Blackmore, foram muito importantes para o desenvolvimento do Metal como conhecemos hoje.

[11] Até porque, na década de 1970, “heavy metal” era um conceito extremamente vago, facilmente intercambiável por “hard rock”. Que bandas como Led tenham a maior parte de seu repertório apontando na direção que hoje chamamos de hard rock não exclui que também possuem faixas importantíssimas (Immigrant Song, Kashmir, Achiles Last Stand…) para os fundamentos do Metal.