Se  manter uma banda na ativa por um ano já é uma tarefa árdua, imagine mantê-la então por uma década. Sim caro amigo leitor, esse é o tempo que Lucas Daniel e Mirella Jambo se dedicam em prol de manter viva a chama do Daimonos. Sobre as origens do grupo, deixo minha contribuição na coluna Conheça.

Encontrar essa dupla foi uma das experiências mais gratificantes desta minha caminhada no underground. A amizade de ambos fora conquistada durante a pandemia, enquanto este que vos escreve, buscava por bandas para conversar em uma série de lives no perfil de meu antigo grupo, a Sacramentia. A química entre nós três fora quase que instantânea, rendendo a minha pessoa, a grande honra de poder participar de um pedacinho da discografia do grupo.Trata-se da faixa No (Body), a quinta do disco Dementia terceiro trabalho do duo, lançado em 2021.

Pouquíssimo tempo depois, precisamente em março de 2022, Asylum (The Psychosis Chronicles) chegou a todas as plataformas de streaming, mostrando ainda mais a capacidade e a habilidade monstruosa da dupla em organizar as ideias e registrá-las em um novo trabalho.

E se engana quem pensa que dois lançamentos tão próximos um do outro, fariam o Daimonos dar uma pausa e colher de perto os frutos dos respectivos álbuns. Enquanto Dementia e Asylum ainda ressoavam pelo underground nacional, um disco comemorativo aos dez anos de trajetória era concebido. E assim surgia Paraphilia, álbum alvo da resenha de hoje.

O disco se inicia com um riff de progressão decadente, passando a sensação de que esse é apenas o inicio da descida por  toda devassidão e podridão que o álbum assolará.Logo essa climatização se esvai, dando lugar a um novo riff digno de bater cabeça. Aqui Mirella faz um duo vocal, mesclando o gutural mais grave com outro gutural um pouco mais feminino, que faz um contraste interessantíssimo no decorrer da faixa, como algo entre vítima e carrasco. A faixa título aborda toda a desordem e insanidade de um indivíduo, cujos prazeres carnais, estão além do tradicional papai e mamãe.

Knife In, Guts Out apresenta uma pegada mais cavernosa e cadenciada dando-nos a sensação, como o título sugere, que este ritmo mais lento e ao mesmo tempo pesado, que estamos de fato tendo nossas tripas expostas através de profundas e dolorosíssimas estocadas de uma afiada lâmina de faca. Destaque aqui para as guitarras que possuem uma pegada bem “Kisseriana” em determinados momentos da faixa.

Na sequência, Putrefaction Stench é uma forte demonstração do quão versátil o som do Daimonos pode ser, iniciando-se com uma onda de breaking downs quase progressiva, que rapidamente se converte na rispidez do Death Metal tradicional do grupo, além de momentos crescentes que deságuam em uma passagem épica e pesada, responsável por reiniciar em seguida, todo o caos sonoro até o encerramento da faixa.Tudo isso sob o odor miasmático da pura putrefação humana contido na letra assinada por Mirella, que poderia também facilmente ser uma versão em áudio dos inúmeros filmes da franquia de VHS’s Faces da Morte.

Ah Disembodied, que música meus amigos!

Ela traz algo quase melódico nas linhas de voz de Jambo, algo menos reto do que as faixas anteriores, sendo algo violento, como sempre, e ainda mais cativante! Aqui, temos uma visão bem filosófica sobre a vida e a morte. E essa visão é dita nada mais, nada menos, do que pelas divagações de um assassino, que agora é o principal detentor sob a sobrevivência ou execução perante a vítima.

Deixando de lado a temática que apelidei de “pornochanchada gore”, o Daimonos revive a crítica religiosa vista no segundo disco, o In The Name Of… (2019). Wrong Fate tem tudo o que gosto de ver em uma canção de cunho antirreligioso. Uma sonoridade mórbida, aliada a uma forte letra que age como um gancho de direita, que acerta em cheio toda a imundice que assola o mundo da religião. Mais uma vez devo elogiar a atuação de Mirella, que interpreta cada palavra transmitindo além do ódio iminente, um alto teor de nojo.

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E se toda a violência desenfreada até aqui fora desencadeada por indivíduos com sérios distúrbios mentais, em Bludgeoned ‘Till Death temos de forma explicita o desejo, que creio que cada um ao menos uma vez na vida já teve, de acabar com a raça de um pedófilo, ainda mais quando uma asquerosa criatura dessas sai ilesa perante os crimes que cometeu. Consigo imaginar, porém sem mensurar, o quão o atual momento que a vocalista vive (mencionarei isso ao final da resenha) pesou no instante em que essa letra veio ao mundo…  

Sadistic obsession possuí um início soturno. E aqui amigo leitor, lhe proponho um exercício de percepção. Ouça essa faixa acompanhando verso a verso em conjunto aos vocais (as outras também, mas essa em especial com ainda mais afinco). Apesar de não ser uma faixa curta, o nível do sadismo a qual somos expostos faz com que a duração dessa faixa, seja uma experiência agonizante, como se por alguns minutos você de fato está no lugar da vítima.

Já os riffs e a atmosfera sufocantes de Pathogenic Anomaly,levam o ouvinte a outra viagem macabra por entre a doentia psique de um individuo escondido como muitos outros em nossa sociedade, muitas vezes de aparência inofensiva, mas possuidor do mais alto extinto assassino. E sem muito tempo para uma breve tomada de fôlego, Murderous Thoughts nos atinge em cheio em uma faixa extremamente violenta, com uma temática lírica que muito me lembrou Addicted to Vaginal Skin, icônica faixa do clássico do Death Metal, Tomb of The Mutilated (1992).

Encerrando o disco com leves salpicadas de Grindcore, Ten Years of Mental Disorder traz outro conto macabro e pesadíssimo que, infelizmente, torna-se real em nossa realidade. Aqui, a banda contou com a participação vocal de Paulo Alexandria, do Self Creation. Os últimos versos dessa faixa vão tilintar e perturbar por um bom tempo sua mente, ao mesmo tempo em que, sintetizam muito bem o que foi o cerne dessa década vivida pelo Daimonos

Lançado oficialmente no dia 10 de fevereiro de 2023, Paraphilia, assim como os trabalhos antecessores do grupo, foram inteiramente produzidos de forma caseira, tendo Lucas Daniel assumindo todos os instrumentos, deixando os vocais e letras para Mirella Jambo. Já a mixagem novamente ficou a cargo de Yves Pimentel do estúdio Death Records.

A grotesca capa no bom sentido da palavra, (se é que se pode haver nisso um bom sentido), serve de alerta aos desavisados que ainda não conhecem o trabalho do duo de Natal, ao mesmo tempo em que assimila um pouco da temática de cada faixa presente no disco. A arte é de autoria Fernando Lima Faria, conhecido pelo papel de vocalista na banda Drowned. E logo que bati o olho nessa bizarrice sado masoquista, que minha mente ,automaticamente, levou meus pensamentos para outra icônica arte do Heavy Metal. Estou falando do clássico Butchered At Birth, segundo registro do Cannibal Corpse lançado 1991. Gosto de interpretar essa capa do Daimonos, como uma releitura moderna, ou até mesmo um complemento igualmente bizarro e perturbador da arte feita pelo americano Vincent Locke.

Ao entrar em contato com o universo de Paraphilia, pude constatar a total maturação que o grupo veio gradativamente apresentando no decorrer desta década que se passou, com os trabalhos que antecederam o novo disco. E posso dizer sem medo, que o sétimo registro da banda (quinto se não contarmos os EPs) é o melhor de toda a discografia da dupla de Natal. A mixagem e todos os instrumentos soam de forma melhor e mais nítidas se comparados aos demais trabalhos. Os guturais de Mirella, a nossa Corpsegrinder brasileira, estão ainda mais potentes e apresentam novas nuances. Vale destacar que enquanto gravava o disco, já se encontrava no ventre da vocalista, a bebê mais linda do metal extremo nacional, feito este, que mostra ainda mais a devoção da frontwoman pelo metal brasileiro.

Em suma meus amigos, fico muito contente em ver a longevidade das bandas do nosso underground. Desejo a Mirella, Lucas e a nova integrante da banda Aurora Maria, vida longa ao projeto, e que mantenham sempre viva  a chama desta instituição brasileira gigantesca chamada Daimonos!

Tracklist: 
1-Paraphilia
2-Knife In, Guts Out
3-Putrefaction Stench
4-Disembodied
5-Wrong Faith
6-Bludgeoned ‘Til Death
7-Sadistic Obsession
8-Pathogenic Anomaly
9-Murderous Thoughts
10-Ten Years of Mental Disorder (feat. Paulo Alexandria from Self Creation)

Nascido no interior de São Paulo, jornalista e antigo vocalista da Sacramentia. Autor do livro O Teatro Mágico - O Tudo É Uma Coisa Só. Fanático por biografias,colecionismo e Palmeiras.