The Cure é uma banda importantíssima para este que vos escreve, responsável por dar início à minha singela coleção de CDs e considerada, ao lado de The Smiths e Joy Division, a minha Santíssima Trindade do Rock. Foi trabalhando aos finais de semana na banca de jornais da minha avó, quando eu tinha por volta de 15 anos, que consegui juntar um dinheirinho para comprar os álbuns da trupe de Robert Smith. Lembro como se fosse ontem, quando vi o rosto do frontman do Cure em um livro de Português na escola, precisamente em um capítulo sobre tribos urbanas. Smith aparecia ali como o símbolo máximo do estilo gótico. Mal sabia eu que já conhecia o som da banda por “Boys Don’t Cry,” presente em uma daquelas coletâneas piratas vendidas em camelôs, cujo nome era algo como Alternativo 2000.
Após o excelente 4:13 Dream (2008), a banda ficou dezesseis anos sem lançar um novo disco de inéditas, limitando-se a excursionar pelo mundo e tocando os clássicos absolutos que permeiam quase meio século de carreira. Mas, finalmente, depois de muitos rumores, mistérios, incertezas e dois singles lançados, o grupo trouxe ao mundo Songs of a Lost World.
Será que tanto tempo de espera não resultaria nos mesmos problemas do controverso Chinese Democracy do Guns N’ Roses, lançado quinze anos após ser anunciado? Já adianto que não.
Portanto, sem mais delongas, adentremos ao denso e bucólico universo sonoro do décimo quarto registro do The Cure.
O álbum se inicia de forma belíssima e arrastada com Alone. Quem conhece o trabalho do The Cure a fundo certamente identificará diversos elementos e atmosferas advindas, ou muito semelhantes, de álbuns anteriores. Nesta primeira faixa, que também foi o primeiro single lançado do disco, notam-se pinceladas da melancolia do icônico Disintegration (1989) combinadas com a densidade de Bloodflowers (2000).
Liricamente, Alone fala sobre o esfacelamento da vida, como gotas de água da chuva que caem lentamente sobre o vidro de uma janela. Recomendo, inclusive, ouvir essa faixa (assim como o disco inteiro) em um dia chuvoso e melancólico…
Na sequência, And Nothing Is Forever é, definitivamente, uma das músicas mais lindas e tocantes que já ouvi neste ano, talvez na vida. A faixa é preenchida por belos e tristes arranjos de teclado conduzidos pelo excelente Roger O’Donnell, capazes de trazer um calor reconfortante ao peito, enquanto aborda a fragilidade da existência e o desejo de reencontro com alguém além da vida, após o último suspiro.
A Fragile Thing, o segundo single divulgado pelo grupo, veio acompanhado da revelação do tracklist oficial de Songs Of A Lost World. Aqui, a atmosfera é um pouco mais leve em comparação às duas primeiras faixas. A sonoridade remete a músicas como The Last Day of Summer e There Is No If.
Warsong coloca o ouvinte novamente para baixo, mas desta vez em uma ambientação muito mais densa e pesada. Percebi certos resquícios de Lullaby e Untitled, mesclados com a desolação sonora que emana diretamente de Pornography (1982). Robert Smith utiliza metáforas de guerra na letra para retratar conflitos emocionais humanos, sejam eles nos relacionamentos ou em momentos de resiliência.
O poderoso e característico contrabaixo de Simon Gallup dá a tônica à faixa seguinte, Drone: Nodrone. A letra da música surgiu de um episódio em que um drone sobrevoou a casa de Smith. A partir desse ponto, ele explora temas como alienação, perda de identidade e o medo da vigilância constante, especialmente no cotidiano digital atual.
I Can Never Say Goodbye é extremamente bela e tocante. Inspirada pela perda do irmão de Robert, a faixa é um verdadeiro grito de impotência diante da perda de uma pessoa querida.
A bateria de Jason Cooper ecoa com energia e traz uma carga mais leve com All I Ever Am. Aqui, Robert Smith revisita o próprio passado enquanto pinta um autorretrato do presente. No refrão e na evolução da melodia, senti essa canção como uma antítese de Doing The Unstuck do alegre Wish (1992).
Fechando o disco, Endsong é uma epopeia sonora que ultrapassa os dez minutos de duração, trazendo teclados gélidos e bateria sombria, remetendo ao melancólico Faith (1981). As guitarras de Reeves Gabrels, que integra a banda desde 2012 e estreia em um trabalho de estúdio, ecoam com maestria e intensidade. Liricamente, a música reflete sobre a passagem do tempo e a desilusão ao perceber que sonhos e ideais do passado não se concretizaram, resultando em uma existência vazia e solitária…
Lançado oficialmente em 1º de novembro de 2024, Songs Of A Lost World foi concebido ao longo de 16 anos. Até a data de lançamento, surgiram inúmeras especulações e promessas do próprio Robert Smith, que em algumas entrevistas afirmou que o álbum poderia facilmente ser um disco triplo. As gravações foram realizadas no Rockfield Studios, no País de Gales, com mixagem assinada por Smith e pelo produtor australiano Paul Corkett.
A arte da capa contou com a colaboração de longa data de Andy Vella, icônico artista por trás de capas conhecidas da banda como The Top (1984) e The Head on the Door (1985). A imagem exibe “Bagatelle,” uma escultura de Janez Pirnat de 1975.
Altamente inspirado por perdas familiares recentes, Songs Of A Lost World traz um Robert Smith literalmente sentindo na pele todos os efeitos da desintegração e da tristeza que sempre evocou ao longo dos anos. Cantar sobre morte e escuridão na casa dos trinta pode ter um peso e carga emocional distintos de agora, aos sessenta e cinco, especialmente ao presenciar a partida de pessoas queridas.
Esperar melodias mais leves como em Friday I’m In Love, High, Close To Me e In Between Days é um ato ingênuo e improvável. Deixo o alerta: não ouça o disco se estiver passando por uma fase difícil, a menos que sinta que o clima melancólico possa servir como um alento.
Muito antes do lançamento, a banda estreou algumas canções ao vivo, incluindo faixas que ficaram de fora do álbum, como It Can Never Be The Same e Step Into The Light.
Falando em apresentações, no último final de semana, o The Cure realizou uma livestream oficial no YouTube para celebrar a chegada de Songs of A Lost World. Gravado em Londres, no Troxy, o show de três horas contou com a execução integral do novo trabalho, além dos clássicos da banda e um set especial em comemoração aos 45 anos de Seventeen Seconds (1980).
Em resumo, Songs Of A Lost World traz referências sonoras elevadas, mas sem soar pedante ou repetitivo, ao contrário de bandas como AC/DC e Iron Maiden que exploram à exaustão suas fórmulas sonoras. Para fãs de longa data, ouvir este álbum é como reviver aquele famoso meme de Leonardo DiCaprio em Era Uma Vez em Hollywood, sempre que alguma nova composição evoca as várias fases da longeva carreira da banda.
Minha única crítica é ao mercado fonográfico brasileiro, que negligencia o público colecionador. Em plena era digital e com facilidades de importação, é impressionante que o colecionador brasileiro só possa ter acesso ao material físico em fevereiro de 2025 (isso, claro, se não houver contratempos), pagando um preço salgado.
Por fim, espero que a promessa de um disco triplo, não cumprida, ao menos resulte em mais um trabalho inédito desta grande instituição que é o The Cure. E que não demore mais dezesseis anos, caso isso realmente aconteça…
Tracklist:
1-Alone
2-And Nothing Is Forever
3-A Fragile Thing
4-Warsong
5-Drone: Nodrone
6-I Can Never Say Goodbye
7-All I Ever Am
8-Endsong