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A fábrica do Heavy Metal: qual a importância das cidades industriais na gênese dessa cultura?

A fabrica do Heavy Metal: história da evolução e da transformação do Heavy Metal em subgêneros está intimamente relacionada com a maneira com que os elementos iniciais dessa cultura foram recebidos e reelaborados posteriormente em outras cenas locais, especialmente na Europa Ocidental e nos Estados Unidos. Não é nada arriscado afirmar que o Power Metal, por exemplo, está para a Alemanha como o Death Metal está para a Flórida, o Black Metal para a Noruega, o Sludge para a Louisiana e o Thrash para a Bay Area, na Califórnia – e a maneira como as culturas locais desses países ou regiões influenciaram na música, nas letras, nos temas, na atmosfera e até no comportamento dos metaleiros, a ponto de gerar subgêneros tão diferentes dentro do mesmo universo, é uma investigação muito interessante de ser feita, até porque a própria origem dos rocks mais pesados da década de 1970 (que, depois, desencadeariam o Heavy Metal) também possui relação muito íntima com algumas localidades específicas da Inglaterra e dos Estados Unidos. Sobretudo, como vocês já devem estar imaginando, a tenebrosa cidade inglesa de Birmingham.

Mas esperem ainda: chegaremos nela – já que é um dos pontos culminantes de qualquer reflexão sobre as origens do Heavy Metal –, mas só depois de darmos uma passeada breve pelos Estados Unidos. Isso porque não deixa de ser curioso para o tema deste mês nesta coluna que grande parte das bandas da música mais pesada dos anos 1970 tenha surgido justamente nas regiões metalúrgicas da América do Norte – lugares envolvidos desde a mineração de ferro ou carvão até a fundição, a forja e a fabricação de coisas com metal. Então, as classes populares desses lugares eram especialmente constituídas por operários da metalurgia (e suas famílias), que tinham, em consequência, a sensibilidade diária atravessada pelo trabalho com o ferro e o aço – desde o manuseio (a coisa tátil da relação da pele com a matéria-prima), até os cheiros e odores da fundição nas fábricas e, é claro, já que estamos falando de música, o convívio com os ruídos metálicos e reiterativos do trabalho industrial. Não deve então ser um acaso que bandas e artistas como estes:

Steppenwolf[1]; Aeromisth[2]; Grand Funk Railroad[3]; Stooges; MC5; Alice Cooper[4]

…que estão entre os exemplos mais precoces e evidentes da direção pesada que o rock passava a tomar na passagem para a década de 1970 (em direção ao punk e ao metal) – não deve então ser um acaso que essas bandas e artistas tenham vindo dos arredores da região dos Grandes Lagos (divisa nordeste dos EUA e sudeste do Canadá), área tradicionalmente metalúrgica, girando em torno do carvão, do aço e da manufatura de aparelhos bélicos e automóveis. Essa é a região que, mais tarde, seria apelidada, em solo americano, de Rust Belt, ou cinturão da ferrugem, por conta da decadência acentuada das fábricas a partir da década de 1970, com as crises do petróleo (falo mais sobre a relação íntima das crises do petróleo com o surgimento do Heavy Metal aqui) e a nova direção das políticas econômicas de Ronald Reagan (década de 1980), nas quais a participação da indústria de manufatura no PIB americano diminuiu significativamente. Obviamente, nesse processo, a região foi afetada em especial, decaindo econômica e socialmente – ou, em outras palavras, “enferrujando”.

Fábrica do Heavy Metal
Área aproximada do Rust Belt, no nordeste dos EUA.

Para resumir uma história longa, veja-se que, nos Estados Unidos, o rock mais pesado que estava surgindo no início dos 1970 não vinha das cenas principais e/ou universitárias, como Nova Iorque ou Califórnia, mas justamente de uma região de tradição metalúrgica. Coincidência? Some-se a isso o fato de que é justamente nessa região dos Grandes Lagos/Rust Belt que fica a cidade de Chicago – talvez não tão importante como um celeiro de bandas de rock pesado, mas de maneira indireta, por manter uma ligação demográfica e cultural importante com outra região crucial pra entendermos a música popular moderna (inclusive o Metal): o delta do Mississipi – e o quebra cabeça começa a ganhar contornos mais bem definidos.

Não vou adentrar demais os territórios do Blues e do rock inicial, assunto que pouco domino, mas quero chamar atenção para o fato de que muitos nomes importantes, como Howling Wolf, Muddy Waters e B. B. King, que nasceram e iniciaram a sua carreira no circuito blueseiro do delta, migraram depois para Chicago, junto a uma grande onda de migração de afro-americanos do sul pobre e rural para o norte industrializado e rico, onde acabaram desencadeando o surgimento do Chicago Blues, um estilo de blues urbano, eletrificado e sem a atmosfera de raiz mais rural da forma clássica do Delta[5].

O fato, então, é que o trânsito entre Memphis (no Tennessee, centro da cena do delta e da infância do Rock’N’Roll) e Chicago era prolífico (até porque a bacia hidrográfica navegável mais importante dos EUA liga essas duas regiões). Então, os músicos que subiram para Chicago levaram a bagagem musical do delta e, uma vez lá, criaram outra cena, de características próprias, especialmente por ser mais eletrificada[6]. Assim, ficam estabelecidos os elementos básicos, misturados no cotidiano de uma mesma juventude regional da época: se juntarmos a atmosfera musical da cidade de Chicago da década de 1950 em diante (o Chicago Blues), a contracultura Beat (que ainda prevalecia), os resquícios decadentes dos hippies dos anos 1960 e o substrato operário da região do Rust Belt, temos então de forma clara a coincidência de fatores decisivos para que as bandas norte-americanas de Hard Rock, Proto-Punk e Proto-Metal surgissem. Com o clima de apocalipse que se estabeleceu em meados da década de 1970, que o Proto-Punk virasse Punk e o Proto-metal virasse Metal, era questão de pouco tempo. Especialmente, do outro lado do oceano Atlântico.

Fábrica do Heavy Metal
Esta é a bacia hidrográfica do rio Mississippi. Repare que as cidades de Chicago e Memphis são interligadas pela navegação no Mississippi e seu afluente, o Illinois.

Chegamos, agora, finalmente, aonde deveríamos: na Inglaterra, as coisas tomaram um rumo parecido – e, quando se trata da cena inglesa do rock pesado na passagem da década de 1960 para a de 1970, é impossível ignorar suas relações com as regiões metalúrgicas das West Midlands, cuja principal cidade era, como vocês já adivinharam: Birmingham. Ali ficava o centro dessa grande área de indústrias que era o principal polo fabricante de armas de fogo inglesas até a Segunda Guerra, e que depois tornou-se um importante polo metalúrgico e automobilístico até os anos 1980.

Um dado curioso, e muito elucidativo, é que J. R. R. Tolkien (sim, o cara do Senhor dos Anéis) vivia em Birmingham[7]. Diz-se que as paisagens da cidade e os relatos históricos sobre elas teriam sido a inspiração para Mordor, a região sombria da Terra-média[8], onde mora Sauron, o antagonista em O Senhor dos Anéis. Nos relatos históricos, a região de Birmingham era frequentemente referida como The Black Country, ou A Zona Negra, um lugar onde seria escuro de dia e vermelho de noite (nos anos da Revolução Industrial).

Outra coisa marcante e muito mencionada da história de Birmingham foram os bombardeios na 2ª Guerra Mundial. Como afirmei anteriormente, a cidade era um centro fabricador de armas, fator que a tornou alvo preferencial da Alemanha nazista em busca de afetar os suprimentos do exército inglês. Proporcionalmente, foi a região mais bombardeada da Inglaterra e, finda a guerra, a geração que nasceu na década de 1940 acabou crescendo em uma cidade totalmente destruída. As primeiras informações visuais de crianças como Ozzy Osbourn, Tony Iommi, Geezer Butler, Bill Ward, Rob Halford, K. K. Downing, Ian Hill, Glenn Tipton, John Bonham e Robert Plant – as primeiras informações visuais da sensibilidade dessas crianças passaram, portanto, pelos cenários de uma cidade catastrófica, reduzida a ruínas.

Novamente, é uma conjunção de fatores: some ao aspecto urbano em ruínas o fato de que a cidade vivia em torno do cotidiano das fábricas, com o cheiro do ferro fundido, o toque do aço e o barulho constante, noite e dia, das prensas de metal, e considere que algumas daquelas crianças citadas acima cresceram para trabalhar nas fábricas (Tony Iommi é o exemplo mais expressivo), e estamos bem próximos daquele que será o sujeito básico do Heavy Metal – formado, quase literalmente, na forja, entre as fornalhas do apocalipse. Mais do que isso, o caso de Iommi é exemplar porque a metalurgia marcou em seu corpo, aos 17 anos, num golpe trágico, suas características – e, consequentemente, na música que fazia, já que o tal golpe decepou-lhe a ponta dos dedos da mão direita (a mão que segura o braço do instrumento, pois ele é canhoto). A história todos conhecem: após um período de depressão profunda, Iommi ressuscitou para a música, e o instrumento em que era prodígio fazendo algumas adaptações importantes em sua guitarra (baixou a afinação, para que as cordas ficassem mais soltas e exigissem menos força ao digitar); e em seu próprio corpo (criou próteses caseiras com plástico derretido e pedaços de couro, acoplando aos dedos decepados). Assim, surgia seu timbre pesado, arrastado e metálico característico.

Seja como for, não há também de ser uma coincidência que o Black Sabbath, o Judas Priest e metade do Led Zeppelin tenham vindo da mesma cidade ou região. Quer tenha sido de fato a soma da arquitetura em ruínas, das condições econômicas e da atmosfera tradicionalmente sombria de Birmingham, quer sejam outros fatores que estou, não voluntariamente, ignorando, o fato é que havia algo que só existia nesses lugares e servia de pressuposto para elaboração em música de um rock novo (Downer Rock, Hard Rock, Heavy Rock, Heavy Metal? A própria dificuldade da crítica musical em estabelecer um nome específico para cada caso mostra a novidade que esse tipo de som trazia), um rock novo, mais pesado e mais pessimista, típico do mundo de um operariado que, outra vez, perdia o futuro.

Notas:

[1]  Steppenwolf é de San Francisco, na Califórnia, mas surgiu da banda canadense The Sparrows, que era, por sua vez, da cidade de Oshawa, no Canadá, berço e centro da indústria automotiva desse país, e que fica coladinha no Rust Belt americano.

[2] O Aerosmith é de Boston, no estado de Massachussets. Até 1969, esse estado foi o principal produtor de armamentos dos EUA, e fornecedor do exército norte-americano. As fábricas ficavam a menos de duas horas de carro de Boston. Era uma região industrial decadente no fim dos anos 1960, com declínio de população operária.

[3] O Grand Funk é de Flint, no estado de Michigan, pertinho de Detroit e Chicago. Foi apelidada de “cidade dos veículos”, por ter sido um importante centro automobilístico até a metade do século XX. Foi nesta cidade que a General Motors foi fundada. A decadência da indústria por lá também começou no fim da década de 1960.

[4] O Alice Cooper, o MC5, e os Stooges são todos de Detroit ou de sua região metropolitana. Detroit já era uma cidade de indústria em decadência avançada na década de 1970.

[5] Dentre outras coisas, o blues de Chicago é muito importante na linha evolutiva do rock pesado por ter sido influente no gosto da geração da Invasão Inglesa (Beatles, Stones, Kinks, Who etc.) e do blues rock inglês do fim dos 1960. Por outro lado, o blues mais tradicional do Delta também deixou sua marca direta, especialmente através de Robert Johnson, o cara do “pacto na encruzilhada”, gênese da futura mítica roqueira de associação do diabo como figura de independência e contravenção.

[6] A própria história da distorção do som da guitarra elétrica passa por aí, mas isso é um assunto que retomarei no futuro.

[7]  Na verdade, ele nasceu na África do Sul, mas cresceu em Birmingham a partir dos três anos e só saiu de lá aos 24 para ir para o front durante a Primeira Guerra.

[8] Até onde meu conhecimento alcança, o nome “Middle Earth”, de Tolkien, é apenas uma coincidência com “Midlands”, a região de Birmingham onde Tolkien vivia, na Inglaterra. Mas é uma coincidência fecundíssima.