O que acontece quando uma banda do mais puro Rock n Roll -uma das maiores, diga-se de passagem, resolve compor um álbum conceitual? Quantas experiências tivemos disso na história? Podemos realmente contar nos dedos. E uma das tentativas mais memoráveis, e principalmente questionáveis, foi a que aqui me proponho a analisar. 


Music From “The Elder”, dos gigantes norte-americanos KISS, é o disco mais arriscado e cabível de discussões da história da banda, por diversos aspectos. Mas hoje, vamos nos atentar apenas à história narrada no primeiro (e último) álbum conceitual da banda, que sempre se intitulou como “a mais quente do mundo” e decidiu brincar com fogo em seu álbum de 1981. 

Music From “The Elder” nasceu em um período turbulento e de muitas dúvidas pairando sobre os caminhos que KISS tomaria. A banda enfrentava uma crise de identidade, de personalidade e de sucesso, consequentemente, pois o álbum anterior, Unmasked, fora o momento que ressaltou os devaneios da banda fora do seu clássico Hard Rock. As críticas eram constantes, e KISS queria provar que poderia não só voltar à suas raízes, como podia ir além: fazer um álbum conceitual, contando ainda com a ajuda do produtor Bob Ezrin, por trás do sucesso Destroyer e do clássico álbum The Wall, do Pink Floyd

Mas, uma banda decidida a provar sua maturidade na hora de compor, e um renomado produtor, é o suficiente para um álbum render um verdadeiro e imersivo conceito e história? Vamos dar o play e descobrir. 


Somos introduzidos com Fanfare, com uma melodia com ar medieval, que combinaria com uma voz falando “era uma vez, em um lugar muito, muito distante…”, e logo ascendendo para uma atmosfera épica e misteriosa. Então, surgem as primeiras mensagens com Just a Boy, cantada por Paul Stanley, que dá voz ao primeiro personagem que conhecemos nessa história: um garoto, assustado com o que está por vir, querendo rejeitar o título de herói e a aventura que o aguarda. 

Endossando uma personalidade vocal mais encorpada, Stanley segue nos vocais para a narrativa seguinte, intitulada Odyssey, que toma tons épicos, uma marcante participação da American Symphony Orchestra, e se adota de muitas metáforas (e até confusas) para ilustrar a grande jornada na qual o jovem protagonista está prestes a mergulhar. Mas, fica claro, que a odisseia do protagonista é uma questão de destino, que se repete vez após vez durante todas suas existências, sempre cruzando com seu companheiro, ainda não revelado.

“Nós sempre fomos e seremos o destino um do outro 
A odisseia um do outro 
(…)
Incontáveis vezes nós nos encontramos, nos encontramos pelo caminho” 

Dando voz a Morpheus, ouvimos Gene Simmons dizendo, logo no início da nova faixa, o nome da música: Only You. Aqui, uma situação interessante é narrada, mencionando que “apenas você tem as respostas, mas as perguntas você tem que encontrar”, ou seja, uma típica situação onde o novo herói da história está banhado em dúvidas, e espera encontrar em seu mentor (ou aquele que o apresenta a sua missão) as respostas, quando na verdade já residem em si. E mais uma vez, temos uma sessão que levanta a tese de repetição do ciclo de heróis predestinados a essa jornada narrada na história: 

“Em todas as eras 
Em todos os tempos 
Um herói nasce 
Como se por um grande desígnio” 

Mas, afinal, quem é Morpheus? O que está acontecendo com o garoto? Muitas dúvidas continuam cercando quem se atenta à história do álbum baseando-se apenas nas músicas. A certeza, que temos, é que se trata de algo misterioso, e, aparentemente, similar à um culto. É disso que trata a faixa Under the Rose, que propõe ao rapaz os sacrifícios e deveres que terá de assumir, para tornar-se de vez um homem, e deixar de ser apenas um menino. 

O fato curioso, liricamente falando, é que pela primeira vez até aqui, temos uma faixa cantada sem nenhum uso da palavra “herói”. Outro fato curioso é que a expressão “under the rose” não é literalmente “debaixo da rosa”, e sim, uma metáfora arcaica da língua inglesa para algo feito em sigilo, segredo, confidência. Isso reforça que a jornada do protagonista se dá por dentro de uma entidade oculta, e que mantém seus hábitos escondidos -sem revelar suas intenções, até então. 

Se tínhamos a dupla Stanley e Simmons (grandes responsáveis pelo direcionamento do álbum em geral, por sinal) assumindo as vozes até aqui, em Dark Light surge um novo personagem, interpretado pelo guitarrista Ace Frehley. Nessa faixa, o nosso protagonista é alertado em uma conversa misteriosa, sobre a “luz negra”, que se manifesta de diversas formas, e pode ameaçar a trajetória de nosso projeto de herói (mesmo que essa palavra mais uma vez não seja usada). 

A transição para A World Without Heroes dá a entender que a tal conversa sobre a “luz negra” assustou o protagonista, que volta a conversar com Morpheus, desabafando sobre seu medo de assumir a responsabilidade de ser um herói. O mentor, então, em tom melancólico, diz o que acha de um mundo sem heróis: 

“Um mundo sem heróis 
É como um mundo sem Sol 
Você não pode admirar ninguém 
Se não existirem heróis” 

Conversar com Morpheus é determinante ao nosso protagonista, e então ele se decide: é hora de assumir seu juramento e seu destino. Com isso, Paul Stanley retorna aos vocais para a mais Heavy Metal do álbum: The Oath. O garoto, em suas palavras, diz retornar ao portão que já esteve mais de cem vezes, e agora, empossado de um fogo ancião, se transforma de vez no homem que era predestinado a ser. Mas, ainda se pergunta: “este realmente sou eu?”. 

Simmons retoma os vocais principais para Mr. Blackwell, que é, de longe, a mais difícil de compreender dentro da história de Music From “The Elder”. Eis que de repente, Morpheus engaja conflito verbal com o tal Sr. Blackwell, com xingamentos e ofensas diretas à essa pessoa, que fica totalmente desencaixada da narrativa. 

Após detonar o Sr. Blackwell, KISS insere uma faixa instrumental chamada Escape From The Island, que inicia com sirenes ressoando e sugere que o protagonista estava este tempo todo passando por suas provações em uma ilha, mas que então, ele decide fugir, mesmo após seu juramento tendo sido feito. Conectando à música anterior, acredito que Sr. Blackwell era um dos líderes do culto, mas que ia contra a ascensão do protagonista. Por isso, Morpheus se opõe à ele, e ajuda na fuga do rapaz. 

E então, em I, o KISS verdadeiro e quente retorna, definitivamente, em uma faixa que realmente parece falar de si mesmo. Com uma levada tipicamente KISS, e mesclas entre os vocais de Stanley e Simmons, a história chega à seu finale com frases de confiança elevada, contrariando todos os que não acreditavam na superação do protagonista, que dispensa drogas e quer apenas o rock n’ roll. Então, não seria o KISS o próprio protagonista? 

Por fim, recapitulamos um trecho de Fanfare e temos o primeiro diálogo narrado na obra, entre uma voz misteriosa e Morpheus

Morpheus, você foi chamado aqui para fazer seu julgamento do garoto. Você ainda o julga digno de fazer parte da Irmandade? 

Com certeza, meu senhor. Na verdade, eu acho que você vai gostar deste. Ele tem brilho nos olhos… e o olhar de um campeão, um verdadeiro campeão! 

A história, assim, se encerra. Sem uma clara conclusão, aliás, sem uma clara história, na verdade. Apesar de admirar a tentativa da banda em criar analogias, utilizar figuras de linguagem e encher as letras de conotações, as composições, liricamente falando, são típicas de quem está tentando impressionar, mas não sabe bem como o fazer. E isso sequer falo apenas por mim, a própria banda já reconheceu as falhas de Music From “The Elder”. Em 2016, Gene Simmons admitiu que a banda mirou no Sgt. Pepper, do Beatles, e acertou em um fiasco sem pé, nem cabeça. 

O que quis trazer nessa matéria foi uma tentativa de compreender, junto à você, o que se passa por trás da narrativa de Music From “The Elder”, pois, na verdade, a impressão que tenho é que certas músicas vieram de fora e foram encaixadas de forma que parecessem ter alguma coesão juntas. Ou, podemos simplesmente aceitar que a narrativa é limitada e não tem fragmentos suficientes para ser grandiosa como a banda imaginava. 

O fato é, que no geral, o álbum não é terrível como muitos pintam ser, e inclusive apresenta momentos interessantes, musicalmente falando. Mas, ficou claro que a praia do KISS é o Hard Rock de grandes arenas e não música para teatro.
Onde há espaço para escrever, tenha certeza que irei deixar minhas palavras. Foi assim que me tornei letrista, escritor e roteirista, ainda transformando minha paixão por música em uma atividade para a vida. Nos palcos, sou baixista da Dark New Farm, e fora deles, redator graduado em Publicidade e Propaganda para o que surgir pela frente.