O mais recente álbum do Sad Theory obteve grande retorno entre os fãs e a imprensa especializada, tanto que Léxico Reflexivo Umbral concorreu em votações de melhores do ano em diversos veículos. Todavia, não apenas a parte musical chamou atenção dos headbangers.
A interessante premissa de ser baseado na série Black Mirror alçou o trabalho a um novo patamar. Porém, há ainda outras camadas de intertextualidade presentes, como o uso de poemas de Cruz e Sousa, importantíssimo poeta brasileiro do século XIX, que combina incrivelmente bem com a temática da banda.
A criação artística literária, da qual as letras de música inevitavelmente são parte, acontece em ciclos. Inovações são, muitas vezes, reinterpretações de conceitos antigos enriquecidos por aspectos contemporâneos, e a mescla do Simbolismo de Sousa ao caráter distópico e pessimista de Black Mirror é um exemplo disso. Na verdade, grande parte desta nova fase da banda tem um caráter neo-Simbolista.
A letra das faixas Cavador do Infinito e Metempsicose é a junção de dois sonetos de mesmos nomes do poeta, e para entender plenamente seu papel no álbum, é preciso compreender a essência do Simbolismo. Essa escola literária teve, no Brasil, seu auge na última década do século XIX, e resgatou o caráter transcendente do Romantismo, mas de modo muito menos idealizado. Nela, os textos visam um entendimento da realidade para além do empírico, buscando um todo universal em fenômenos como a Natureza, Deus, ou o Nada. Isso, é claro, evoca uma antiga dor transcendente e filosófica, a qual é moldada pela beleza estética nada ortodoxa que os Simbolistas conseguiam dar às suas obras.
O baixista e letrista Daniel Franco comenta sobre a carga lírica da canção:
“‘Cavador do Infinito’ trata magistralmente das consequências inesperadas de se explorar o desconhecido (‘O Infinito transformou-se em Lava’), que é o tema central da série Black Mirror, da qual o disco tira inspiração. Um pouco mais específica, ‘Metempsicose’ lida com a fluidez da alma através de diferentes receptáculos, tema que também se faz presente na série, de mais de uma maneira. Por fim, ‘Ébrios e Cegos’ é o título emprestado também de Cruz e Sousa, e nomeia a faixa instrumental que fecha o álbum. O clima de ressaca pós-apocalíptica dos versos está presente na atmosfera da música, ainda que as palavras, não”.
A metáfora nada usual do Cavador do Infinito, um ser não identificado que cava pelo Universo todo de modo inerentemente angustiante, é análoga ao medo do futuro proposto em Black Mirror e também às nuances introspectivas que o death metal costuma ter. Essa ânsia por explorar coisas grotescas e/ou macabras é outra herança do Simbolismo, a qual se iniciou (ou ao menos ganhou enorme popularidade) no livro Flores do Mal, de Charles Baudelaire (trabalho abordado pelo próprio Sad Theory, há cerca de duas décadas, no álbum A Madrigal Of Sorrow), considerado o precursor e a “bíblia” dessa Escola.
Metempsicose também é uma herança secular que foi reinterpretada várias vezes ao longo do tempo. O termo, que tem origem na Grécia Antiga, se refere à transferência da alma entre os corpos, em geral após a morte destes. O termo foi recontextualizado por filósofos contemporâneos a Cruz e Sousa, como Arthur Schopenhauer, e também pelo próprio Sousa, evocando angústias mais profundas. O conceito também é relembrado, ainda que não nominalmente, por Black Mirror, literal e figurativamente, com questões como a transferência de consciência e a ressurreição, e por isso se encaixa tão brilhantemente no álbum.
A maldita tradição literária brasileira é, há tempos, fonte de inspiração para o grupo:
“Quando me foram apresentados os materiais produzidos para o Vérmina Audioclastia Póstuma, em 2015, isso já havia ficado claro para mim. O Guga [vocalista] havia escrito três letras, todas com uma carga existencial e pessimista muito forte. Já estava pronta também a ‘Tédio’, poema musicado do João da Cruz e Sousa, que levava esse conceito do decaimento para níveis nefelibáticos. Ali já se desenhava na minha frente todo um conceito e as letras restantes foram praticamente se escrevendo sozinhas. O primeiro verso da primeira música já é uma referência direta ao ‘Monólogo de uma Sombra’, de Augusto dos Anjos, e as canções foram ordenadas de forma a, como numa ópera, delinear acontecimentos. ‘Tédio’, nesse quadro, acabou repousando no local que simbolizava a monotonia da rotina de um enfermo em franca decadência física e psíquica. Esse caráter altamente metafórico dos simbolistas permite uma impressionante versatilidade para cimentar diferentes conceitos.
No álbum seguinte, Entropia Humana Final, não foi diferente. Ele chafurda a fundo em episódios tétricos da sociedade humana no século XX, morticínios em massa, genocídios de variadas formas, os demônios interiores assumindo o controle dos indivíduos e das coletividades às claras. Nesse caso, ‘Antífona’, também de Cruz e Sousa, foi incluída como poema musicado, assim como a ‘Tédio’ no álbum anterior. Ela traz, além dos aspectos pessimistas e existencialistas de sempre, a solenidade do rito religioso, como se buscasse alcançar as múltiplas almas desencarnadas pelos eventos das outras letras. Ou seja, trouxe a liga lírica que projetou os acontecimentos descritos para a dimensão metafísica/espiritual”, explica.
Este histórico da segunda encarnação do Sad Theory, considerando o retorno em 2012, deve seguir no futuro:
“Assim criou-se uma tradição, e é bem possível o Dante Negro, assim como seus notáveis pares malditos, sigam como nossos patronos para os próximos álbuns”, finaliza Franco.
Léxico Reflexivo Umbral, tem onze músicas inéditas, apostando em um som brutal, que não abre mão da melodia e do lirismo profundo. O grupo é formado por Claudio “Guga” Rovel (vocal), Aly Fioren (guitarra), Daniel Franco (baixo) e Jeff Verdani (bateria). A versão física do trabalho, saiu em luxuosos digipacks com poster. O disco também está disponível nas plataformas digitais.